Operação Varsity Blues — Matthew Modine no papel de Rick Singer |
Operação Varsity Blues (Netflix) investiga um escândalo que abalou o sistema universitário dos EUA: um documentário que, insolitamente, também tem actores, com destaque para Matthew Modine — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 abril).
Para onde vai o cinema? Eis uma pergunta cinéfila que vamos relançando, quase sempre desembocando num impasse. Valerá a pena arriscar uma derivação: para onde vão os filmes? Alguns exemplos concretos, contraditórios e fascinantes, podem ajudar-nos a lidar com as incertezas que se deparam. Operação Varsity Blues, produzido e difundido pela Netflix, é um desses exemplos — um documentário, realizado por Chris Smith, sobre um escândalo que abalou o sistema universitário dos EUA.
Abalou? Em boa verdade, trata-se de um caso muito recente, revelado em 2019, com vários dos envolvidos ainda a ser julgados. Essa é, aliás, uma das componentes mais perturbantes do próprio filme: não uma memória mais ou menos “encerrada”, antes uma teia de factos e alegações que permanecem muito vivas no tecido social americano.
Daí o carácter híbrido do próprio objecto cinematográfico criado por Chris Smith. Por um lado, há nele a lógica de um programa televisivo (“60 Minutes”, por exemplo) que recolhe e organiza informações e testemunhos, visando o esclarecimento de uma teia de relações que pôs em causa os valores de todo um sistema de ensino; por outro lado, um pouco à maneira de certos documentários de canais temáticos (“History”, “National Geographic”, etc.), as informações disponíveis dão origem a algumas situações encenadas, com actores profissionais, “reconstituindo” acções muito específicas.
Poderia dar-se o caso de tudo isto gerar apenas um produto televisivo, eventualmente útil pela informação coligida, mas de mera rotina informativa. Ora, não sendo opostos, os resultados são bem diferentes, acabando por reflectir o carácter híbrido de alguns modelos narrativos da actualidade. Para nos ficarmos por um exemplo próximo, o fulgor de Operação Varsity Blues, em particular no cruzamento de matérias e informações de origens muito diversas, faz lembrar a notável agilidade de O Capital no Século XXI (2019), documentário de Justin Pemberton a partir da obra de Thomas Piketty, já editado em DVD (Alambique Filmes), entretanto disponibilizado também numa plataforma de streaming (Filmin).
É provável que o leitor tenha tido conhecimento deste escândalo através de notícias que destacavam, sobretudo, o envolvimento de figuras públicas como a actriz Felicity Huffman (popularizada pela série Donas de Casa Desesperadas) e Olivia Jade (vedeta “social” do YouTube, na altura com 19 anos). Em jogo estava um esquema montado para que, independentemente dos seus méritos, filhos de famílias ricas entrassem em determinadas universidades.
Rick Singer, efémero treinador de basquetebol num liceu da Califórnia, foi o cérebro de toda a “operação”. Explorando as “portas laterais” (a expressão é dele) do sistema de admissão às universidades, pôs a funcionar um esquema de surpreendente sucesso: através de doações das famílias às universidades (por vezes superiores a meio milhão de dólares), conseguia que os respectivos filhos fossem admitidos. Para lá da falsificação de testes de admissão, apresentava os candidatos como jovens dotados para determinados desportos (basquetebol, pólo aquático, remo, etc.), que, em alguns casos, nunca tinham sequer praticado.
A circulação do dinheiro
Balanço? Ao longo dos anos, várias centenas de famílias (como a de Huffman) participaram no esquema, facilitando a entrada de jovens (como Jade) em determinadas universidades. Cerca de três dezenas de pais foram julgados por terem pago mais de 25 milhões de dólares de subornos. Ainda em tribunal, Rick Singer enfrenta uma pena máxima de 65 anos.
Como alguns comentadores americanos têm sublinhado, a mediatização do processo corre o risco de favorecer uma visão que escamoteia as qualidades globais das universidades dos EUA. Até porque, convém lembrar, as doações às universidades são legais. O certo é que Operação Varsity Blues não apela a generalizações desse teor, sendo antes um retrato francamente invulgar de um fenómeno sempre difícil de explicar e explicitar. A saber: a circulação perversa do dinheiro.
A decisão de encenar algumas situações, com destaque para as conversas telefónicas de Rick Singer com os pais dos candidatos, terá resultado do facto de tais conversas terem funcionado como fulcral matéria de prova. Foram registadas pelo FBI, surgindo agora interpretadas por actores, com inevitável destaque para Matthew Modine no papel de Singer. Estamos perante uma desconcertante proeza: uma notável interpretação no interior de um filme que, em última instância, é um projecto de natureza documental.
Pormenor de saborosa ironia: o título do filme reproduz a designação oficial da operação de investigação levado a cabo pelas autoridades. Trata-se da recuperação de um outro título, Varsity Blues, comédia dramática de 1999 centrada na ascensão de uma equipa de futebol (americano), com o papel central entregue a James Van Der Beek, efémera estrela juvenil. É caso para dizer que, dentro do FBI, há quem conheça bem a história de Hollywood.