PIERRE BONNARD A Sobremesa (1921) |
Nos telemóveis, as fotografias deixaram de ter valor: é preciso usar uma aplicação e “transformá-las em arte” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 abril).
No menu dos “smartphones” proliferam aplicações que nos convidam a fazer fotografias com os mais variados recursos técnicos. Incluindo as que evocam certas memórias mais ou menos distantes, algumas permitindo até a recuperação nostálgica de películas que, como dizem os tecnocratas, foram “descontinuadas”. Exemplo insólito: uma aplicação que oferece a possibilidade de refazer o “look” de uma determinada película da Fuji que, pela densidade dos seus verdes e castanhos, ficou associada ao visual da década de 1990 — a “actualização” vai ao ponto de inscrever nas imagens agora obtidas uma data de um ano daquela década.
apppage |
Que arte é esta? Pois bem, são hipóteses de intervenção que podem fazer lembrar ancestrais tratamentos da fotografia em papel (algum tipo de alto contraste ou o efeito de um filtro difusor atenuando os contornos de corpos e objectos) ou processos de “morphing” cujo delírio chega ao ponto de existir uma aplicação que sugere a conversão de um rosto por nós fotografado “à maneira de” Edvard Munch e do seu célebre quadro O Grito…
Que aconteceu no nosso imaginário tecnológico (ou na tecnologia que determina o funcionamento do nosso universo figurativo) para que a intervenção artística seja definida — e oferecida — como esta possibilidade pueril? Porquê e para quê manipulações técnicas que têm tanto de automatizado como de impessoal?
Dois princípios ideológicos parecem confluir aqui — e são tanto mais poderosos quanto se confundem com uma espécie de “estado natural” da produção e difusão de imagens. O primeiro procura gratificar o nosso individualismo digital: somos proprietários e, mais do que isso, criadores de imagens que mais ninguém tem. O segundo, mais insidioso e profundamente reaccionário, sugere que as imagens (sobretudo as fotografias) são acidentes sem importância que só se “transformam em arte” quando nelas aplicamos algum “efeito especial”, promovendo a figuração do mundo a um jogo infinito de manipulações mais ou menos arbitrárias.
Les Demoiselles d'Avignon |
As aplicações que querem transformar as nossas imperfeições quotidianas “em arte” conseguem, assim, reavivar o velho preconceito que acompanhou (e, pelos vistos, continua a acompanhar) a nossa relação com a pintura que foi dispensando as matrizes figurativas dos séculos XVIII e XIX. Como se, em 1907, os corpos distorcidos de Les Demoiselles d’Avignon fossem um “engano” de Pablo Picasso e não o risco calculado de quem procurava a alegria de novas linguagens.
Seguindo tal perspectiva meramente tecnológica, o quadro A Sobremesa, pintado por Pierre Bonnard há um século (1921), poderia até ser apresentado como uma pré-história das aplicações dos “smartphones”. Em vez de se limitar à reprodução fotográfica, Bonnard teria partido da sua evidência para depois “retocar” tudo com manchas de cor mais ou menos festivas, susceptíveis de definir um belo padrão de cores, eventualmente adaptável a alguma linha de pronto a vestir…
Que Bonnard seja, por exemplo, um dos mais complexos retratistas da intimidade humana ou um metódico reconstrutor das regras clássicas da profundidade de campo, eis o que não passa, por certo, de divagação “intelectual”. Em nome da tecnologia, demitimo-nos do prazer de ver.