Iván Ojeda, aliás, Iván Monalisa Ojeda |
Exibido no Queer Lisboa, A Viagem de Monalisa está agora numa plataforma de streaming: um belo documentário sobre uma personagem à conquista da sua própria identidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 abril).
Por óbvias razões económicas, culturais e emocionais, vivemos um tempo de crucial revalorização das salas de cinemas. Ao mesmo tempo, seria pueril negar uma evidência complementar: as plataformas de streaming há muito deixaram de ser uma mera “repetição” do mercado tradicional, distinguindo-se também pelos inéditos que dão a ver. É o caso de A Viagem de Monalisa, da chilena Nicole Costa, agora disponível na Filmin — recorde-se, em qualquer caso, que o filme foi revelado entre nós, em 2020, na 24ª edição do Queer Lisboa.
O menos que se pode dizer é que estamos perante um documentário centrado numa personagem invulgar, definida e, num certo sentido, inventada no cruzamento da tragédia mais íntima com uma formidável paixão pela vida: Iván Ojeda é essa personagem. A realizadora estudou com ele arte dramática, na Universidade do Chile, tendo-lhe perdido o rasto logo após a conclusão do curso: Iván partiu para Nova Iorque, para uma residência artística com duração de um mês… e nunca mais ninguém soube dele.
Passados 17 anos, Nicole Costa veio a saber que o seu ex-colega continuava a viver em Nova Iorque. O filme pode ser resumido como uma procura e um reencontro. O talentoso estudante dos tempos vividos no Chile é, agora, alguém que responde pelo nome de Iván Monalisa: transexual, define-se como uma pessoa de “dois espíritos”, escreve poesia, faz dinheiro como prostituto e é toxicodependente; além do mais, aguarda ainda a legalização da sua situação nos EUA.
Em tempos de muitas formas de “catalogação” de comportamentos, por vezes reduzidos a discursos militantes (uns genuinamente complexos, outros banalmente panfletários), poderia esperar-se que a A Viagem de Monalisa se esgotasse numa reivindicação “simbólica” da diferença. Seria uma hipótese, eventualmente interessante, mas o filme é um objecto distante de tal lógica. Trata-se, de facto, de uma viagem ao mundo privado de Iván, tanto mais intensa, por vezes comovente, quanto tudo acontece através da cumplicidade afectiva de Iván e Nicole.
Quando, finalmente, obtém o seu cartão de “autorização de emprego” nos EUA, Iván (agora, oficialmente, Iván Monalisa) comenta que a sua identificação sexual — “F” de feminino — é insuficiente, já que gostaria que existisse uma outra categoria: “outro”, ou “intersexo”, ou “ambos”. Daí que, numa das conversas que o filme regista, se insurja contra a utilização da palavra “decadência” em determinados contextos; para ele/ela, quando aplicada a determinadas pessoas ou modos de vida, a palavra (“eu tenho um problema com a palavra decadência”) tende a favorecer o preconceito e, em última instância, a marginalização das próprias pessoas.
Quando Iván Monalisa Ojeda publica o seu primeiro livro, La Misma Nota, Forever (o filme documenta a sessão de lançamento), compreendemos também que a afirmação pulsional das palavras faz parte do processo de resistência a qualquer decadentismo. Em boa verdade, há sempre “outras” maneiras de dizer e olhar, escrever ou filmar.