terça-feira, março 23, 2021

Veneza, memória e esquecimento
— Luchino Visconti

Björn Andrésen e Dirk Bogarde

Inspirando-se em Thomas Mann, Luchino Visconti filmou e celebrou a criação da beleza como acto puramente espiritual: Morte em Veneza surgiu há 50 anos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 fevereiro).

[ Relógio D'Água ]
A adaptação cinematográfica de Morte em Veneza, de Thomas Mann, está a fazer meio século. Mais exactamente, o filme de Luchino Visconti, resultante de uma coprodução italo/francesa, estreou-se em Itália a 1 de março de 1971, tendo chegado aos ecrãs portugueses cerca de seis meses mais tarde.
Guardo memórias quentes da sua descoberta e das fascinantes clivagens críticas que o enquadraram. São memórias tanto mais persistentes quanto acompanhei tais clivagens ainda apenas como leitor. O debate de ideias estava longe de se esgotar numa qualquer dicotomia (hoje em dia frequente nas redes pouco “sociais”) entre o “bom” e o “mau”, os “prós” e os “contras”. Dos entusiastas aos reticentes, todos pareciam coincidir no reconhecimento e, num certo sentido, na partilha de uma convulsão muito mais radical porque, no limite, civilizacional: colhendo a herança plural de Mann, Visconti situar-se-ia num ponto em que a arte oscilava entre a celebração redentora da beleza e a rendição a um pessimismo quase suicidário. De um lado, o factor humano como linguagem de um sagrado sem deuses; do outro, o seu metódico desaparecimento como coisa irrisória, sem futuro.
Apesar do seu esquematismo “psicológico”, o clássico retrato tripartido de Visconti ajuda a enquadrar todo esse abalo interior: aristocrata, marxista e homossexual, ele foi, de facto, o admirável criador de uma obra capaz de integrar todas as componentes da sua identidade, sem nunca se encerrar em qualquer determinismo demonstrativo, muito menos panfletário. Talvez se possa considerar que Morte em Veneza é um filme que nos ajuda a ligar a dimensão trágica de Rocco e os seus Irmãos (1960) à cruel secura melodramática do título final, O Intruso (1976), porventura um pouco como podemos ler a narrativa inspiradora de Mann, publicada em 1912, como um breve ensaio ainda tocado pela frieza realista da escrita de Os Bunddenbrook (1901), mais tarde refeita na vertigem trágica de A Montanha Mágica (1924).
Há uma maneira cristalina de dizer tudo isto. Ou, pelo menos, uma palavra cujo poder mágico ilumina e assombra a escrita de Mann, impregnando a visão de Visconti. Essa palavra, Veneza, parece desafiar a “morte” do título, aceitando-a, devorando-a e, por fim, transcendendo-a. Como se Veneza fosse um supremo cenário de vida para reconhecer a inabalável proximidade da morte. A saber: a incurável fragilidade de qualquer ser humano.
É essa a saga de Gustav von Aschenbach, o compositor que contempla os fantasmas de Veneza, lentamente envolvida pela peste, como quem encontra a partitura incompleta da sua biografia. Como se o reencontro com a serenidade de viver fosse um modo de aguardar o chamamento da morte.
Demorei muito a compreender, sem dúvida a sentir, que os maneirismos de Dirk Bogarde na personagem de Ascenbach estão longe de se poder reduzir a um “excesso” de significação imposto pelo narcisismo do actor. Acontece que esse narcisismo começa na personagem: é um gesto de defesa de quem sabe estar a representar uma experiência teatral, tendencialmente solitária, a que não vai sobreviver.
Tadzio (Björn Andresen), o adolescente que Aschenbach devora com o olhar, surge como objecto do seu desejo, sem que seja possível reduzi-lo a um mero signo “erótico”. Nesta perspectiva, a passagem das décadas leva-me a supor que há uma cumplicidade, não apenas temporal, entre Morte em Veneza e O Último Tango em Paris. Lançado no ano seguinte, 1972, também realizado por um italiano, Bernardo Bertolucci, O Último Tango emerge das ilusões libertárias da década anterior, refazendo o mapa das sexualidades: a promessa de um pueril êxtase sem fronteiras desemboca, exausta, no reconhecimento da vulnerabilidade de qualquer utopia humana.
Aschenbach, enfim, existe através da procura obstinada da beleza como matéria ideal do trabalho artístico. Como ele diz ao seu amigo Alfred (Mark Burns), “os artistas são como caçadores, visam no escuro.” Mais do que isso: “Não conhecem o seu alvo e não sabem se o atingiram.” Daí a sua convicção filosófica: “A criação da beleza e da pureza é um acto espiritual.” Escusado será dizer que a maravilhosa insensatez de tudo isto tem dificuldade em sobreviver na vertigem virtual dos nossos ecrãs. Esquecemos Veneza.

>>> Trailer de Morte em Veneza + Venezia [National Geographic].