O Leão da Estrela (1947) |
Foi homem de teatro e pioneiro da televisão, mas é na memória da comédia cinematográfica “à portuguesa” que a sua imagem persiste como fundamental referência artística e afectiva: 50 anos depois do seu falecimento, lembramos o actor António Silva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 fevereiro).
O cinema português, tantas vezes mal conhecido, porque reduzido a clichés sem fundamento, não deixa de ter a sua pequena mitologia popular. Pequena não por qualquer menoridade artística, antes porque sempre lhe faltou a estabilidade duradoura de uma indústria e a consistência económica do respectivo mercado. António Silva é uma das poucas personalidades que há muito conquistou um lugar de eleição nessa mitologia. Agora que se assinala o cinquentenário do seu falecimento (a 3 de março de 1971, contava 84 anos), podemos dizer que o seu nome superou épocas e modas, sendo conhecido e reconhecido como símbolo alegre e contagiante da arte de ser português — uma espécie de português suave.
Recordemos o exemplo modelar de O Leão da Estrela, realização de Arthur Duarte que a Tóbis Portuguesa produziu e lançou em 1947. António Silva interpreta aquela que é, muito provavelmente, a sua mais célebre personagem cinematográfica: o impagável Anastácio, adepto ferrenho do Sporting que anda desesperado para conseguir um bilhetinho de qualquer preço ou qualidade, “de pé, sentado, de cócoras…”, para ir ver o jogo da sua equipa com o Porto, a disputar na casa do rival.
Eram tempos de paixões futebolísticas bem diferentes das que envolvem as análises televisivas dos nossos dias, sob a pedagógica vigilância do VAR. Aliás, O Leão da Estrela inclui a figura emblemática, afinal realista, de Pedro Moutinho, devidamente identificado logo no genérico de abertura como “o locutor da Emissora Nacional”, a interpretar, como se diz, o seu próprio papel… Num tempo em que a televisão não passava de uma risonha utopia (as emissões regulares começariam uma década mais tarde), a vivência social do futebol era, assim, essencialmente radiofónica.
Em 1942, em O Costa do Castelo, também sob a direcção de Arthur Duarte, António Silva protagonizara já uma cena exemplar dedicada ao fenómeno radiofónico. Aí, na pele do enérgico Simplício Costa, apresentava à sua atónita e maravilhada comunidade familiar um instrumento ultra-moderno, coisa que “canta, mas não é canário”, aparelho revolucionário que emite sons e, pormenor importante, não se chama rádio, mas sim… telefonia: “Isto abre-se, liga-se à parede e é uma torneira a deitar música.” Como o aparelho demora a estabilizar, Simplício apresta-se a esclarecer: “São as bobinas que ainda estão frias.” Mais exactamente: “A onda passa na lâmpada e recua; daí, o som quer sair e não pode… Tem de aquecer o carburador, é o que é!”