Helena Zengel, Tom Hanks |
Sob a direcção de Paul Greengrass, Tom Hanks surge a protagonizar Notícias do Mundo (Netflix), um “western” situado poucos anos depois da Guerra Civil. Ou como as memórias de Hollywood se fazem e refazem no cinema do presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 fevereiro).
Uma aventura sem o ruído ensurdecedor de super-heróis e afins? Mais do que isso: uma aventura em que a crueza da observação histórica não exclui o espírito de redenção? Enfim, um “western” para o nosso tempo atribulado, muitas décadas depois de Hollywood ter abandonado a produção regular de filmes do género? A resposta será sim. Três vezes sim. Com o aparecimento de Notícias do Mundo (título original: News of the World), uma história do Oeste americano situada em 1870, cinco anos depois do fim da Guerra Civil, podemos mesmo confirmar um dos aspectos mais desconcertantes, e também mais interessantes, da actual conjuntura cinematográfica: são as plataformas de streaming (Netflix, neste caso) que estão a favorecer o reencontro e revalorização das matrizes do classicismo.
Não se trata de recuperar o “western” como mero modelo cenográfico, antes de o assumir como narrativa que, de uma maneira ou de outra, sempre reflectiu algumas das convulsões mais dramáticas da história dos EUA. Esta é a história do Capitão Jefferson Kyle Kidd que, depois de ter combatido pela Confederação dos estados do Sul, vai ganhando a vida, de cidade em cidade, lendo as notícias dos jornais que transporta consigo (é essa, obviamente, a primeira motivação do título Notícias do Mundo); durante um périplo pelo norte do Texas, circunstâncias acidentais levam-no a recolher a pequena Johanna, uma criança que tinha sido raptada pelos índios Kiowa, com eles tendo vivido os últimos seis anos… As autoridades pretendem recolocar Johanna na casa onde nasceu, mas devido à lentidão da burocracia militar Kidd é aconselhado a fazer uma viagem de mais de 600 quilómetros para entregar Johanna à sua família de origem alemã.
Deparamos com uma sugestiva encenação romanesca da história político-social, não sendo arriscado supor que tal perspectiva já está presente no romance homónimo, da autoria de Paulette Jiles, que o filme adapta (foi um dos cinco finalistas do National Book Award, referente a 2016). A epopeia da expansão para Oeste — “Go West!”, segundo a expressão mítica dessa expansão — surge, agora, transfigurada numa tapeçaria social e laboral de muitos contrastes em que os traumas da guerra e os conflitos com os índios definem uma nação à procura da sua unidade perdida (ou nunca alcançada).
Vários analistas americanos referiram que Notícias do Mundo pode também ser encarado como um eco simbólico das muitas divisões sociais exacerbadas pela presidência de Donald Trump. Há mesmo uma cena em que a leitura dos jornais por Kidd, referindo as medidas postas em prática pelo Presidente Ulysses S. Grant visando a abolição da escravatura, suscita violentos protestos da maior parte dos assistentes… Dito isto, importa acrescentar que o filme está longe de depender de tais “rimas” históricas, vivendo, antes do mais, da singularidade das suas personagens.
Mérito da realização de Paul Greengrass, sem dúvida. É verdade que ele se especializou em filmes cuja “velocidade” visual funciona como uma verdadeira assinatura (Green Zone, uma produção de 2010 sobre Baghdad, durante a Guerra do Iraque, parece-me ser o exemplo mais conseguido). Desta vez, porém, através de muitas nuances emocionais, Greengrass expõe-nos a saga de duas figuras dramaticamente fascinantes, cada uma delas a tentar encontrar as razões do seu próprio destino: Tom Hanks é brilhante na definição do Capitão Kidd a partir de um misto de curiosidade humana e pragmatismo político; no papel de Johanna, Helena Zengel (actriz alemã, actualmente com 12 anos) é um caso invulgar de precocidade e talento.
Mais do que uma homenagem à riquíssima tradição do “western”, Notícias do Mundo acaba por ser um objecto que estabelece relações muito directas com um período da produção de Hollywood — as décadas de 1960/70 — em que o “western”, a par de outras matrizes da produção clássica, foi criticamente repensado e esteticamente reinventado a partir das suas bases históricas e narrativas.
Podemos, assim, definir Notícias do Mundo como um novo capítulo de uma linhagem que tem um momento decisivo em A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah: em cenários da fronteira com o México, os heróis puros, ou purificadores, davam lugar a personagens sem destino, “devoradas” pela violência da história. Aliás, vale a pena referir que uma componente muito particular da visão de Peckinpah — o realismo cru dos cenários, da lama das ruas à fragilidade das casas das cidadezinhas do Oeste — ecoa também no trabalho de Greengrass.
Notícias do Mundo encena a trajectória da pequena Johanna, aos ziguezagues entre lugares e famílias, como expressão das contradições da expansão para Oeste, a ponto de o filme se desenvolver também como um exercício coral, cruzando a língua dos Kiowa, o inglês e o alemão. Nesta perspectiva, creio que faz sentido evocar outra referência tutelar, também de 1969, realizada por Abraham Polonsky: O Vale do Fugitivo (título original: Tell Them Willie Boy Is Here), com Robert Redford e Robert Blake, tragédia íntima de um índio que, nos primeiros anos do século XX, já não tem o que Johanna talvez ainda possa encontrar: um lugar para viver.