Uma boa metade da história do cinema existe em imagens a preto e branco, o que não impede que, por puro preconceito, os respectivos filmes sejam frequentemente rejeitados… por lhes faltar a cor — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 fevereiro).
Paradoxos da vida cinéfila… Ao longo dos anos, deparei com uma reacção frequente aos filmes com imagens a preto e branco. Seriam sintoma de uma pobreza expressiva, e até técnica, que as cores vieram “corrigir”. O preto e branco não passaria de um sinal de pretensiosismo estético e vaidade filosófica, apenas celebrado por um público minoritário de intelectuais… Sem esquecer que há toda uma cultura do insulto que aplica a palavra “intelectual” como um gesto automático de ostracismo e subsequente purificação.
Pertenço aos vencidos. Não conheço argumentação racional capaz de anular o esquematismo de tais preconceitos. Nem mesmo a sensatez de que nenhum filme é “melhor” ou “pior” por ter sido rodado a preto e branco (ou a cores, se for caso disso). Tornou-se mesmo inútil recordar que uma boa metade da história do cinema existe a preto e branco. Com a generalização dos televisores a cores (a partir de 1980, em Portugal), até mesmo o romance de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman no preto e branco de Casablanca (1942) pode ser encarado como um incidente sem alternativa.
A demonização do preto e branco cruzava-se, por vezes, com a triunfante ridicularização dos filmes em que era mais evidente o peso e, sobretudo, a duração dos diálogos. Exemplo supremo: A Minha Noite em Casa de Maud (1969), obra-prima de Eric Rohmer nascida ainda sob o signo da Nova Vaga francesa. Como se não bastasse a heterodoxia do seu catolicismo, Rohmer dava-se ao luxo de acumular dois pecados sem remissão: filmava a preto e branco (com direcção fotográfica do espanhol Néstor Almendros, um dos génios da história das imagens cinematográficas) e massacrando-nos com “intermináveis” diálogos… Pior um pouco: as personagens eram intelectuais da zona de Clermont-Ferrand e passavam o tempo a perorar sobre Pascal, os labirintos da matemática, as convulsões do catolicismo, a noção de pecado e outras coisas dispensáveis.
Estou a caricaturar? Talvez, ma non troppo. Esse tipo de resistência aos elementos específicos de determinados filmes sempre existiu. O que favorece uma ignorância que nada tem que ver com “gostos” seja de quem for. Tal resistência impede que os filmes sejam, pelo menos, descritos através dos seus elementos e não em função de estereótipos que ignoram tudo da sua especificidade. Como se alguém começasse a denegrir o futebol porque aqueles esforçados rapazes não utilizam uma bola de ténis…
Chegamos a 2021, tempo do streaming triunfante. E paradoxal. Observo a feliz agitação com que tem sido recebido o filme Malcolm & Marie, realizado por Sam Levinson, heroicamente nos tops de consumo da Netflix. Confesso-me enredado em perplexidade e confusão. Porquê? Por dois factos insólitos: primeiro, eis um filme a preto e branco; depois, as duas únicas personagens (Zendaya e John David Washington) preenchem mais de 100 minutos do nosso precioso tempo a falar, a falar, a falar…
Entenda-se: considero o filme muito interessante. Seduz-me o seu estilo de diálogos saborosamente “teatralizados” que tem uma referência modelar na obra de David Mamet, a meu ver um dos autores marcantes de toda uma reconversão crítica da dramaturgia clássica de Hollywood. Não creio que Levinson possua a verve de escrita, nem a complexidade simbólica, de Mamet, mas isso em nada diminui a energia contagiante do seu filme.
Acontece que aquilo que era (e continua a ser) encarado como uma “limitação” cinematográfica, parece anular-se agora numa nova conjuntura de consumo. Como se a memória cinéfila fosse um buraco sem fundo. Será que os entusiastas de Malcolm & Marie vão a correr à conta de Instagram da Fundação de Serralves para aceitar uma das suas sugestões e descobrir Gertrud (1964), do dinamarquês Carl Th. Dreyer, por certo um dos mais prodigiosos títulos já rodados a preto e branco?
A pergunta que emerge é, em última instância, de natureza cultural: com a multiplicação da oferta do streaming, que espectadores estão a nascer? Ou ainda: há neles uma genuína disponibilidade para conhecerem a pluralidade da história do cinema ou são apenas peões incautos de fenómenos de marketing? “Teremos sempre Paris”, diz Bogart, mas não creio que seja essa a questão.