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Comunicar? Eis uma evidência destes tempos de pandemia, mas anterior à sua existência: o nosso quotidiano passou a ser vivido através de ecrãs, de tal modo que falar com alguém é, muitas vezes, dialogar com a sua imagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 fevereiro), com o título 'A sociedade das cabeças falantes'.
Esta imagem de Greta Garbo é muito anterior ao nosso tempo de circuitos virtuais. Pertence a um dos clássicos absolutos do romantismo cinematográfico: Margarida Gauthier (título original: Camille), uma variante de A Dama das Camélias realizada por George Cukor em 1936. E porque a pulsão romântica alimenta o seu próprio assombramento, lembremos que, poucos anos depois, em 1941, A Mulher de Duas Caras, também sob a direcção de Cukor, seria o filme com que, aos 35 anos, de modo brusco e irreversível, Garbo encerrou a sua carreira.
Nada a ver connosco. Agora, os grandes planos dos nossos rostos tornaram-se uma presença ubíqua do quotidiano — existimos e comunicamos através de ecrãs. Fazêmo-lo por iniciativa própria ou correspondendo a algum apelo vindo de outro internauta. E até a palavra “internauta” parece prometer alguma aventura de efeitos especiais.
Não é caso para menos: com maior ou menor disponibilidade, por vezes com compreensível relutância, damos corpo a uma sociedade de cabeças falantes. Protagonizamos diálogos à distância através de dispositivos virtuais que geram a ilusão de estarmos num mesmo lugar. Ou que inventam e promovem um modo de relação que gerou um novo e estranho lugar, compulsivo, único passível de ser habitado.
De tal modo que uma expressão fetiche do jornalismo contemporâneo — “em tempo real” —, se impôs na sua perversa inocência, impedindo-nos de ver e, sobretudo, sentir que não há realidade do tempo a não ser a que resulta dos modos da sua gestão. Questão política, por excelência, mas optámos por não pensar nisso.
Todos os humanos estão, agora, formatados como cabeças falantes. Eu, tu, ele — existimos através da imagem que se move no ecrã do computador ou do telemóvel. E falamos para a imagem do outro. Vivemos como se isso não fosse… um modo de vida. Quanto mais imagens usamos, menos paramos para pensar nelas, para perguntar como somos, ou podemos ser, através da sua produção e circulação.
Basta que nos acomodemos a uma certeza sem transcendência: o familiar, o amigo, o companheiro de profissão, eventualmente o interlocutor acidental que acabamos por “conhecer” apenas através de um ecrã, todos se confundem, agora, com as respectivas imagens. Mais do que uma via de comunicação, a imagem tornou-se um compulsivo bilhete de identidade — estou num ecrã, logo existo.
Com prudente pessimismo, por vezes com inusitada alegria, mentimos a nós próprios, acomodando-nos na noção tecnocrática segundo a qual o desejo de sociedade se realiza desde que algo “passe” em algum circuito informático. Vivemos como peões incautos da ideologia que nos garante que a mera circulação de mensagens ou mercadorias corresponde a uma ideia de sociedade.
Passou a ser moda, primeiro mediática, depois individual, considerar que este processo de desmaterialização da vida (pública e privada) não passa de uma consequência directa e inevitável da crueldade da pandemia. Como se a proliferação de relações humanas através de ecrãs (que não é o mesmo que a simples proliferação de ecrãs) não fosse, há muito, um processo de reorganização de todas as dimensões do nosso viver.
A questão de fundo — que é, afinal, uma questão de superfícies — não está na resistência automática à configuração tecnológica do nosso tempo, das nossas vidas e, podemos dizê-lo sem ironia, das nossas mortes. Não se trata de escolher a caverna da pré-história contra o uso das redes “sociais”. Trata-se, isso sim, de começar pelo reconhecimento pedagógico de que, com ou sem pandemia, a configuração social da nossa existência passou a ser pontuada por um sistema de ecrãs em que somos peças de um xadrez de intermináveis “diálogos”.
Protagonizamos e, mais do que isso, vamos consolidando um novo sistema de aprendizagem social, logo de educação. Um dos seus princípios mais fortes decorre da ideia segundo a qual olhando a imagem do nosso semelhante num ecrã isso basta para criar um laço social. Temos medo do nosso próprio silêncio, fixamos o outro no ecrã e não nos calamos, mesmo quando nada temos para dizer. Em boa verdade, já não vemos, talvez já nem consigamos conceber, a pura alegria que perpassa no rosto de Garbo.