Ingmar Bergman
e Jörgen Lindström durante a rodagem de O Silêncio |
Ao longo do mês de Novembro, a Cinemateca Portuguesa apresentou um ciclo a que foi dada a sugestiva designação de 'Só o cinema'. Objectivo: celebrar o carácter irredutível da linguagem cinematográfica: "Quando o cinema vem com um sopro de autenticidade que transcende as outras artes, como Bazin disse: “é preciso ler em filigrana a evidência da graça”, pois os signos de Deus não são sempre sobrenaturais. E só a arte cinematográfica tem o misterioso dom de nos remeter de forma única e direta para o reino secreto das emoções, com uma evidência tão pura, tão espontânea quanto inédita. Inédita pois é sem precedente nas artes: como só no cinema acontece, o que só o cinema transmite: Só o cinema!"
Em tempos de desvalorização do pensamento sobre o cinema, tratava-se (e trata-se) de resistir à mediatização pueril dos filmes: O Silêncio, de Ingmar Bergman, pode servir de pretexto e motivação para discutir o que está em jogo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Novembro).
Há dias, ao ler um texto crítico sobre um filme, deparei com esta frase na respectiva caixa de comentários: “Detestei este filme!” Sem mais. E também sem assinatura, a não ser uma sigla indecifrável. Dito de outro modo: o trabalho de quem escreveu alguns milhares de caracteres a partir de um filme de modo a elaborar um pensamento (muito ou pouco consistente, não é isso que está em causa) pode ser “desmontado” através de impropérios deste teor, breves e… sem pensamento. Mais do que isso: há uma ingenuidade democrática que tolera a publicação desta aliança entre mediocridade e irresponsabilidade.
Caí em mim, depressa dando conta da inutilidade da minha indignação face a tão microscópico episódio. De facto, no território da “comunicação social” (bela expressão, por sinal) a discussão sobre o grau de responsabilidade exigível a leitores e espectadores tem sido abafada pelo triunfo do liberalismo pueril das “redes sociais”. E tentar suscitar essa discussão apenas a partir de exemplos como o citado não passa de um gesto de vulgar quixotismo.
A questão que, creio, vale a pena relançar é a da especificidade do próprio cinema. A saber: não apenas o valor atribuído ao filme A, B ou C, mas a consciência daquilo que o faz ser… um filme. O desenvolvimento da cultura do futebol, por exemplo, faz com que a maioria dos cidadãos tenha ideias razoavelmente informadas sobre a especificidade do jogo — dos sobressaltos do fora de jogo ao conceito de dois ou três defesas centrais, o saber futebolístico democratizou-se. Seria interessante que a profundidade de campo nos filmes de Orson Welles ou a utilização dos planos subjectivos por Alfred Hitchcock pudessem ser tratadas com a mesma abrangência social (leia-se: cultural).
Creio que é a celebração dessa especificidade que serve de tema aglutinador ao belo ciclo que a Cinemateca Portuguesa apresentou ao longo do mês de novembro: 'Só o cinema' — a Cinemateca roubou o título a Jean-Luc Godard e eu roubo-o à Cinemateca. Que está em jogo? Pois bem, o conhecimento daquilo que faz que um filme exista como objecto que não se confunde com qualquer outro (mesmo quando, por exemplo, adapta “fielmente” um determinado romance). Ou como se escreve no texto de apresentação: “a pura linguagem cinematográfica”.
Entenda-se: a pureza dessa linguagem é ambígua, já que provém de uma infinita diversidade. Envolve as emoções ascéticas de Robert Bresson em Peregrinação Exemplar (1966), a convivência com o impensável da morte em Frankenstein Criou uma Mulher (1966), de Terence Fisher, ou o confronto com os fantasmas da história de Portugal em O Quinto Império - Ontem como Hoje (2004), de Manoel de Oliveira (que encerrou o ciclo, dia 30).
Exemplo extremo e fascinante dessa vibração sem nome que “só o cinema” sabe identificar e percorrer poderá ser O Silêncio (1963), de Ingmar Bergman. Nele encontramos um trio algo bizarro: duas irmãs, Anna (Gunnel Lindblom) e Ester (Ingrid Thulin) em cruel confronto afectivo, e o filho de Anna, Johan (Jörgen Lindström), vagueando pelos corredores do hotel em que se hospedam. Viajam no mais indecifrável dos cenários: um país fictício, algures na Europa central, cuja língua não dominam, numa conjuntura de guerra iminente.
Como recorda o programa da Cinemateca, este é o “silêncio” de Deus perante os medos, perplexidades e ânsias dos pobres humanos, enredados em confrontos sem razão nem racionalidade. Ora, justamente, o cinema revela-se capaz de colocar em cena a longínqua abstração de tudo isso através de uma paradoxal sensação de proximidade (rima com carnalidade) que constitui, afinal, uma das fundamentais matérias do universo criativo de Bergman.
Vivemos um tempo de crescente indiferença pelas nuances de tudo isso. A aceleração informativa que nos arrasta é estranha à simples possibilidade de pararmos para percorrer os labirintos bergmanianos. Daí também o desafio cultural que, aqui e agora, impõe a defesa intransigente das salas escuras. Não por ignorância ou indiferença pelas maravilhas do cinema em “streaming”. Apenas porque essas salas nos ensinaram a escutar o silêncio.