São Jerónimo no seu estúdio: a gravura de Dürer, com data de 1514, é convocada por Patti Smith para escrever sobre o presente |
O mais recente livro de Patti Smith, O Ano do Macaco, começa no ano da eleição de Donald Trump para desembocar nas agruras deste tempo de pandemia: compreender o mundo é também viajar num sonho dentro de um sonho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Novembro).
A imagem de São Jerónimo no seu estúdio, criada por Albrecht Dürer em 1514, é uma das ilustrações do novo livro de Patti Smith, O Ano do Macaco (ed. Quetzal, tradução de Helder Moura Pereira). Em boa verdade, designá-la como uma “ilustração” pressupõe uma lógica descritiva que o próprio livro nos leva a questionar. Para Patti Smith, as imagens não são uma mera visualização de tudo aquilo que as palavras referem, evocam ou pressentem; antes uma companhia que nos ajuda a lidar com um mistério antigo: escrever e produzir imagens são formas entrelaçadas de compreender o mundo.
Compreender o mundo? Eis um trabalho que vale a pena empreender para lá da esforçada objectividade dos noticiários televisivos. Em jogo está a ilusória transparência do tempo, esse falhanço permanente com que designamos o “agora”, para logo a seguir reconhecermos que chegamos sempre atrasados — já passou. A ampulheta de vidro que Dürer colocou lá ao fundo, ao centro, atrás de São Jerónimo, testemunha o irrisório desejo de tudo medirmos: “Ainda que seja mais do que provável a existência de um princípio objetivo que nos diga a velocidade com que a areia passa de um lado ao outro da ampulheta, não há vantagem em possuir um vidro de melhor qualidade ou grãos de areia mais perfeitos.”
Esta corrida contínua do tempo, porventura contra o tempo, não é um aparato teórico. E também não tem nada de inacessível ou esotérico. É mesmo um dado corrente, singelo, não necessariamente banal, de qualquer existência humana. Pode manifestar-se, por exemplo, como desconcertante saldo de uma refeição: “O meu esparguete já não estava no prato. Mal me lembrava de o ter comido. A conta tinha a data de 1 de fevereiro. Para onde se teria evaporado janeiro?”
Daí que os sonhos de Patti Smith pontuem muitos momentos do livro, a ponto de levar o leitor a formular uma pergunta bizarra: será que ela escreveu enquanto sonhava? Isto porque o sonho não se anuncia como uma cena alternativa, à maneira daqueles filmes em que o ecrã começa a ficar turvo, a imagem a desfocar-se, e já sabemos que “isto agora não é a realidade”… Na escrita de Patti Smith sonhar é tão só alargar as fronteiras da realidade, aceitando o misto de insensatez e beleza que todo esse movimento pode envolver: “Um botão ficara caído aos meus pés. Um pequeno botão de plástico cinzento com uma fina linha agarrada, que meti no bolso como se fosse uma moeda da sorte, uma espécie de sinal de um sonho dentro de outro sonho.”
Qual ponto de fuga em que brilha uma luz difícil de contemplar, a morte vai-se instalando como destino suspenso de todo o paciente labor da escrita. Naturalmente, apetece dizer — mesmo se esta Natureza resiste a ser descrita ou apropriada. É preciso aceder a diferentes medidas do tempo, incluindo o calendário chinês que justifica o título do livro: “Era o Ano do Macaco e eu tinha sido teletransportada para um novo território, sendo deixada sob sol impiedoso numa estrada sem uma única sombra.”
Aqueles que vão morrer adquirem, por isso, uma intensidade tecida de amor e angústia. Corria o ano de 2016 e Patti Smith convoca duas personagens fulcrais da sua intimidade artística: o poeta e produtor musical Sandy Pearlman, ligado aos Blue Öyster Cult, banda essencial na trajectória da autora, e o escritor, actor e cineasta Sam Shepard, companheiro de todas as aventuras afectivas e filosóficas (falecidos com um ano de intervalo, a 26 de julho de 2016 e 27 de julho de 2017, respectivamente).
Recordá-los é um gesto pleno de contrastes: olhamos uma privacidade que mantemos a uma distância pudica, ao mesmo tempo que ziguezagueamos entre o triunfo de Donald Trump nas eleições de 2016 (“Tentei ignorar o aperto na garganta, consequência de um pavor que crescia a cada segundo”) e a evidência da pandemia de 2020 em que o livro se suspende. No horizonte, afinal mágico, deparamos com a mesma entidade, terna e cruel, retratada por outros grandes narradores, de David W. Griffith a Don DeLillo, passando por Bob Dylan. A saber: a mãe América.
Compreender o mundo? Eis um trabalho que vale a pena empreender para lá da esforçada objectividade dos noticiários televisivos. Em jogo está a ilusória transparência do tempo, esse falhanço permanente com que designamos o “agora”, para logo a seguir reconhecermos que chegamos sempre atrasados — já passou. A ampulheta de vidro que Dürer colocou lá ao fundo, ao centro, atrás de São Jerónimo, testemunha o irrisório desejo de tudo medirmos: “Ainda que seja mais do que provável a existência de um princípio objetivo que nos diga a velocidade com que a areia passa de um lado ao outro da ampulheta, não há vantagem em possuir um vidro de melhor qualidade ou grãos de areia mais perfeitos.”
Esta corrida contínua do tempo, porventura contra o tempo, não é um aparato teórico. E também não tem nada de inacessível ou esotérico. É mesmo um dado corrente, singelo, não necessariamente banal, de qualquer existência humana. Pode manifestar-se, por exemplo, como desconcertante saldo de uma refeição: “O meu esparguete já não estava no prato. Mal me lembrava de o ter comido. A conta tinha a data de 1 de fevereiro. Para onde se teria evaporado janeiro?”
Daí que os sonhos de Patti Smith pontuem muitos momentos do livro, a ponto de levar o leitor a formular uma pergunta bizarra: será que ela escreveu enquanto sonhava? Isto porque o sonho não se anuncia como uma cena alternativa, à maneira daqueles filmes em que o ecrã começa a ficar turvo, a imagem a desfocar-se, e já sabemos que “isto agora não é a realidade”… Na escrita de Patti Smith sonhar é tão só alargar as fronteiras da realidade, aceitando o misto de insensatez e beleza que todo esse movimento pode envolver: “Um botão ficara caído aos meus pés. Um pequeno botão de plástico cinzento com uma fina linha agarrada, que meti no bolso como se fosse uma moeda da sorte, uma espécie de sinal de um sonho dentro de outro sonho.”
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Aqueles que vão morrer adquirem, por isso, uma intensidade tecida de amor e angústia. Corria o ano de 2016 e Patti Smith convoca duas personagens fulcrais da sua intimidade artística: o poeta e produtor musical Sandy Pearlman, ligado aos Blue Öyster Cult, banda essencial na trajectória da autora, e o escritor, actor e cineasta Sam Shepard, companheiro de todas as aventuras afectivas e filosóficas (falecidos com um ano de intervalo, a 26 de julho de 2016 e 27 de julho de 2017, respectivamente).
Recordá-los é um gesto pleno de contrastes: olhamos uma privacidade que mantemos a uma distância pudica, ao mesmo tempo que ziguezagueamos entre o triunfo de Donald Trump nas eleições de 2016 (“Tentei ignorar o aperto na garganta, consequência de um pavor que crescia a cada segundo”) e a evidência da pandemia de 2020 em que o livro se suspende. No horizonte, afinal mágico, deparamos com a mesma entidade, terna e cruel, retratada por outros grandes narradores, de David W. Griffith a Don DeLillo, passando por Bob Dylan. A saber: a mãe América.