Eis o fado devolvido à sua mais radical, e também mais bela, verdade primitiva: uma guitarra portuguesa (Paulo Parreira) e uma viola (Rogério Ferreira), e ainda a esplendorosa aventura de uma voz: Roubados, de Aldina Duarte, é um testemunho fundamental, tornado urgente, de retorno à teatralidade fundadora do fado, celebrando o desafio humano de devolver as palavras à sua solidão primordial — a única que, afinal, pode ser partilhada numa transcrição em disco (ou qualquer outro suporte sonoro), e também no espaço específico de um concerto.
Não simplifiquemos, claro. Não se trata de esquecer, muito menos demonizar, todas as derivações formais através das quais o fado tem sido vivido — e escutado — ao longo de décadas, a começar pelas sofisticadas e alegres variações de Amália. Não podemos esquecer as orquestrações mais ou menos "sinfónicas", como não fará sentido secundarizar as muitas "perversões" experimentadas por exuberantes linguagens que o tempo foi destruindo, a começar pelo teatro de revista.
Trata-se, isso sim, de reconhecer que a essência do fado nada — mas mesmo nada — tem que ver com a sua liofilização para exportação, em grande parte exponenciada por um entendimento pueril da condição de património imaterial da humanidade. Internamente, o principal efeito artístico de tal rótulo foi mesmo a multiplicação de fadistas de dramática incompetência técnica e artística, de facto, sem alma (este é um domínio em que a palavra alma pode e deve ser aplicada com todo o seu valor patrimonial).
Escutando Aldina Duarte em Roubados reencontramos um tempo — aliás, uma duração — em que a vibração da voz não depende da elaboração instrumental que a acompanha. Aliás, dito de outro modo: os instrumentos não "acompanham", antes se definem como elementos vivos de uma cenografia cujo ponto de fuga é sempre a presença cristalina das palavras. Exemplo: Veio a Saudade (António Campos/Jorge Barradas), com Rogério Ferreira na viola.