domingo, novembro 22, 2020

"Pra cima de puta"

KAZEMIR MALEVICH
Quadrado negro
1915

I. Curiosa hierarquia anatómica do insulto: diz-se "abaixo de cão", implicando que o animal, por si só, já é uma referência pouco digna, quer dizer, moralmente muito baixa; no pólo oposto, "pra cima de puta" (e não "abaixo de puta") denuncia uma irrecuperável degradação moral, de tal modo que, neste caso, paradoxalmente, subir na escala afasta a pessoa visada de qualquer hipótese de redenção. 

II. Que Cristina Ferreira use a segunda expressão como título de um livro seu, eis uma escolha inevitavelmente curiosa, tendo em conta que a autora quer evitar qualquer arbitrariedade metaforizante, esclarecendo que se trata de uma "provocação", no sentido em que o seu objectivo primordial é uma "chamada de atenção". Atenção para quê? Para uma "análise sociológica" das "agressões" nas "redes sociais" — a começar por aquelas a que ela tem sido sujeita, incluindo a classificação "pra cima de puta". 

III. Somos todos pavlovianos, eis a questão. Por um lado, Cristina Ferreira é uma personalidade pública do espaço televisivo, em grande parte apoiada nas chamadas redes sociais, o que ajudará a explicar o seu natural interessa pela sociologia. Identidade, sistema moral e estratégia empresarial, tudo nela existe arquitectado e exponenciado através de tais circuitos. Por outro lado, pressente agora que a utopia "social" que tão empenhadamente tem protagonizado pode ser uma ilusão cruel, convocando os seus seguidores "para percebermos que mulheres e homens atacam ferozmente".

IV. Oxalá seja bem sucedida em tão heróico empreendimento, mesmo se os tempos nos tornaram cépticos em relação a todas as formas de heroísmo. Num plano meramente afectivo, diria que, para muitos cidadãos da minha geração, esta é uma inesperada oportunidade de reflexão: desde La Maman et la Putain (1973), de Jean Eustache, que um título não nos alertava para os insondáveis e contraditórios poderes de algumas palavras.

V. "Na Internet e nas redes sociais, a maldade grassa, o fel destila. Assusta-me perceber que há gente que se alimenta disso, que julga e agride os outros com facilidade e sem pudor", escreve Cristina Ferreira. A esse propósito, podemos referir que há mesmo quem pense que o poder tecnológico, discursivo e comunicacional do sr. Mark Zuckerberg merece ser classificado "abaixo de cão" — estará, talvez, para aparecer um livro com esse título.