As Férias do Sr. Hulot (1953) |
A partida de ténis de As Férias do Sr. Hulot (1953) define o génio e a acutilância crítica do cinema de Jacques Tati: através do seu humor subtil, ele é tão francês quanto universal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Setembro).
Por vezes, apetece perverter a lógica dos tops de filmes. E inventar listas que não favoreçam especulações pueris sobre se “algo” mudou no mundo do cinema porque, depois de várias décadas com O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, a liderar a lista dos “melhores de sempre”, o primeiro lugar passou a pertencer a Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock (aconteceu em 2012 na sondagem internacional promovida, de dez em dez anos, pela revista britânica “Sight & Sound”).
Eis um exemplo possível: fazer a lista dos filmes com as melhores partidas de ténis. Apostaria que As Férias do Sr. Hulot (1953), de Jacques Tati (1907-1982), arrebataria o primeiro lugar com grande avanço… Enfim, com todo o respeito pelos que se lembraram de imediato da imponderável bola a bater na rede filmada por Woody Allen em Match Point (2005), ou ainda, claro, do assombramento que perpassa por raquetes, bolas e isqueiros (!) em O Desconhecido do Norte Expresso (1951), de Alfred Hitchcock.
Acontece que os filmes de Tati voltaram à actualidade, cumprindo um ciclo típico da actual vida comercial do cinema e do qual, neste caso, o mercado português não ficou alheado. Assim, os últimos anos foram de paciente recuperação da obra de Tati, processo que teve um importante momento simbólico em 2002, no Festival de Cannes, com a projecção da cópia restaurada de Playtime - Vida Moderna (1967). Os filmes foram repostos nas salas, tiveram edições em DVD e Blu-ray e agora a sua obra integral como realizador, duas curtas e seis longas-metragens, está disponível numa plataforma de streaming (Filmin).
As Férias do Sr. Hulot é, justamente, o filme em que Tati estreia a sua personagem de Hulot. E o mínimo que se pode dizer é que a sua resistência ao tempo, superando conjunturas e modas, envolve uma lição universal. Porquê? Porque Tati consegue a proeza de inventar uma figura que concilia a inserção muito concreta num determinado tempo histórico e uma alegria figurativa que, à boa maneira do burlesco do cinema mudo, lhe confere a exuberância de uma fascinante abstracção.
Hulot é o cidadão igual a todos os outros, supostamente banal e integrado, ao mesmo tempo livre e inclassificável. Em As Férias do Sr. Hulot, vêmo-lo como peão de um xadrez social (em cenário de férias, obviamente) que reflecte a diversidade da França em período de recuperação económica. Pressentimos que ele procura pertencer ao colectivo, não atraindo dramas ou sobressaltos; ao mesmo tempo há sempre um “excesso” que o distingue e, de alguma maneira, isola.
A partida de ténis de As Férias do Sr. Hulot é, justamente, uma dessas cenas em que contemplamos a sua ambivalência. Hulot vive a aventura de um corpo que resiste a diluir-se na imagem global de felicidade que os outros protagonizam, querem, fingem ou imaginam protagonizar. Tudo se passa como se Hulot fosse um rebelde sem programa político: a sua pose é a de quem tenta pertencer ao colectivo; o seu corpo, bizarro e imprevisível existe numa solidão que nos toca e atrai.
Tudo isto, importa lembrar, acontece através de um ciclo de narrativas em que Tati faz uma verdadeira antologia de usos e costumes franceses, expondo a fragilidade anímica de uma sociedade que vai deslizando da comicidade rural de Há Festa na Aldeia (1949), a primeira longa-metragem, para a codificação de todos os laços familiares e profissionais, visível no já referido Playtime e ainda em Trafic/Sim, Sr. Hulot (1971), por certo um dos filmes mais sarcásticos que já se fizeram sobre a sedução consumista do automóvel. Sem esquecer, claro, O Meu Tio (1958), precisamente uma crónica sobre a transição dos lugares de um viver tradicional e ingénuo para os novos arranjos urbanos, liofilizados e impessoais.
Se é verdade que tudo isto nos remete para momentos muito concretos da história da França, não é menos verdade que a visão de Tati possui um singular eco universal. Através de um humor subtil e contagiante, ele filma as relações sociais como uma paisagem de mútuo desconhecimento. Aqui e agora, seria um retratista das ilusões ecuménicas das redes (ditas) sociais. E da primordial dificuldade de devolver a bola com a raqueta.