sexta-feira, setembro 25, 2020

A pandemia
e a cultura dos multiplex

[1981]

Que está a acontecer no mercado das salas de cinema? Será que esse mercado pode viver, e sobreviver, apenas através dos “blockbusters” americanos? Uma coisa é certa: a pandemia não explica tudo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Setembro). 

Na vida das salas de cinema, a história dos multiplex começa a adquirir peso comercial e simbólico em paralelo com a consolidação do modelo de “blockbusters” de Hollywood, algures em meados da década de 80. Foi uma reconversão drástica, não apenas no consumo dos filmes, mas também no funcionamento do seu imaginário social. 
Martin Scorsese
Os valores culturais dominantes (incluindo no domínio arquitectónico) foram secundarizando as salas clássicas de cinema, algumas verdadeiras preciosidades (arquitectónicas, justamente), abandona-as a sortes muito diversas. Exemplo extremo, extremamente português: a trágica destruição do Cine-Teatro Monumental, na Praça do Saldanha, em Lisboa. Quando? Em 1984. 
Há sempre a tentação de explicar o triunfo da cultura dos multiplex através do domínio global da indústria americana. Não poucas vezes, tal visão serve também para demonizar tudo o que traga chancela “made in USA”. Em boa verdade, nada é tão simples. E não só porque um mínimo de disponibilidade mental permite reconhecer que o grande cinema americano (Martin Scorsese, Clint Eastwood, David Fincher, etc.) é quase sempre exterior ao modelo “blockbuster”. Também não há maneira de confundir a alegria criativa e a imaginação cinéfila de Os Salteadores da Arca Perdida (1981), de Steven Spielberg, “blockbuster” de excelência, com as rotinas preguiçosas da maior parte dos títulos gerados nos últimos anos pelos estúdios Marvel. 
Clint Eastwood
Com a pandemia, os multiplex enfrentam aquela que é, por certo, a maior crise da sua história. Mesmo um “blockbuster” como Tenet, de Christopher Nolan (filme admirável, não é isso que está em causa), não consegue satisfazer as expectativas de rentabilidade que, de acordo com análises de especialistas americanos, tinham sido delineadas pela própria indústria. 
Curiosamente, em alguns contextos, incluindo o português, as reposições de filmes clássicos, dos mais diversos períodos e origens, têm atraído um número considerável de compradores de bilhetes, proporcionalmente superior. Não generalizemos, claro. Trata-se de um circuito de dimensão reduzida, com um peso nas contas globais do mercado inevitavelmente menor do que a área dos multiplex. 
Ainda assim, vale a pena sublinhar um sintoma. Se as salas “especializadas” (que, em tempos, ostentaram o rótulo sugestivo, mas equívoco, de “arte e ensaio”) conseguem manter uma frequência interessante, isso decorre de um trunfo que, mesmo enfraquecido pela pandemia, não perdeu valor. A saber: a fidelidade do seu público. 
David Fincher
Ora, a cultura dos multiplex não soube criar um público. O seu triunfo financeiro decorreu da repetição extenuante de modelos de promoção de “acontecimentos” sustentados, não por uma qualquer ideia de cinema, antes por esse valor perverso que culturalmente também nos domina: o de que descobrir um determinado objecto (um filme, por exemplo) já não depende do objecto, apenas da possibilidade de sermos peões de um gigantesco exército de consumidores. 
No jogo da oferta e da procura, foi-se mesmo dispensando qualquer trabalho consistente sobre aquilo que se oferece. De tal modo que as matrizes dominantes do marketing, cada vez menos sensíveis a valores realmente cinematográficos, passaram a esgotar-se na produção de “eventos”, alheando-se da sua vocação primordial: a promoção específica de filmes concretos. 
São raros os exemplos de “multi-salas” que, ao longo das últimas décadas, tenham mostrado real empenho no sentido de diversificar a oferta. Triunfou uma ideologia determinista segundo a qual o mercado poderia viver da acumulação interminável de “blockbusters”, sendo tudo o resto comercialmente dispensável. 
Não sei (creio que ninguém sabe) quantificar a perda de espectadores que isso representou. Seja como for, não precisamos de organizar uma sondagem científica para reconhecer que o mercado dos “blockbusters” foi gerando uma nova franja de espectadores que se define pela decisão de não frequentar as salas que exibem… “blockbusters”. Creio que, por vezes, tais espectadores perdem filmes extraordinários, mas a crítica é um discurso minoritário.