quarta-feira, julho 29, 2020

O dinheiro somos nós
— memórias do Tio Patinhas & etc.

No mundo do Tio Patinhas: memórias de histórias aos quadradinhos
em que o dinheiro surge, literalmente, nas imagens
A maior parte das relações em sociedade pressupõe alguma componente ou troca financeira. O que justifica uma pergunta sobre o nosso mundo iconográfico: como é que as imagens representam (ou não) o dinheiro? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Julho).

Tenho saudades do Tio Patinhas, confesso. Nas histórias aos quadradinhos (a classificação aristocrata de “BD” estava por inventar), não era das minhas personagens preferidas. Mas não quero arranjar desculpas: é bem provável que a sua avareza militante tenha corrompido de modo irremediável a minha frágil mente infantil, educando-me para uma convivência perversa com o dinheiro. Seja como for, nunca possuí a quantidade suficiente de moedas e notas, já para não falar de lingotes de ouro, que me levasse a compreender a sua relação com o dinheiro e, sobretudo, as bizarras componentes dos respectivos prazeres e tormentos.
De facto, ele nadava em dinheiro. Literalmente: sozinho ou na companhia dos atónitos sobrinhos (pobres crianças…), o Tio Patinhas dava mergulhos no seu tesouro, por vezes em pose de feliz veraneante, deslocando-se num pitoresco barco a remos. Com o passar dos anos, tendo falhado a minha carreira de milionário, tornei-me um intelectual. O que, com resultados certamente desiguais e discutíveis, me leva a conceptualizar os eventos mais díspares, discutindo de modo potencialmente infinito as suas significações. Ou seja, o Tio Patinhas legou-me uma herança iconográfica que muito prezo: o dinheiro ainda acedia ao mundo das imagens, era possível representá-lo nas imagens.
BACON
[site oficial]
Agora, só mesmo algumas formas de publicidade se atrevem a representar o dinheiro, mas a sedução perdeu-se. Observem-se alguns anúncios de jogos de azar: quase sempre, os potenciais milionários são representados como seres de triste boçalidade, sonhando com praias tropicais… Podiam até ambicionar comprar uma pintura de Francis Bacon num leilão da Christie’s, o que, além do mais, seria infinitamente mais caro do que umas férias nas Bahamas… Mas não: a imaginação do marketing prefere não arriscar em duvidosas derivações artísticas.
A questão complica-se face ao desigual tratamento mediático do dinheiro ganho por determinadas personalidades públicas. Assim, o país pode ser abalado por homéricos debates em torno de alguns milhares de euros auferidos por alguém que, melhor ou pior, desempenha um cargo oficial. O certo é que uma qualquer personalidade do mundo do futebol pode ser paga em milhões sem que tal situação desencadeie o mais ténue torpor social.
Lembram os mais sensatos que aquilo que é pago com o dinheiro dos contribuintes não se pode confundir com o universo dos negócios privados. Assim será, mas permito-me dar conta do meu cepticismo face a tal racionalização. Não porque tenha qualquer dúvida em relação à legitimidade e transparência de tais negócios. Antes porque seria interessante enriquecer o debate e perguntar quem paga os dinheiros de que o futebol se alimenta: as quotas de sócios, os bilhetes dos estádios, as assinaturas de televisão por cabo, os produtos promovidos nas camisolas dos jogadores, as próprias camisolas dos jogadores, etc. Dir-se-ia que, face ao Estado, o cidadão comum é um contribuinte; quando financia um clube de futebol, passa a ser um anjo da guarda.
GODARD
[Vogue Paris]
A carência de imagens do dinheiro ilustra um processo de desumanização dos próprios modelos cognitivos em que vivemos. Há alguns anos, quando a expressão “mercados financeiros” passou a integrar a gíria jornalística, Jean-Luc Godard (cineasta sempre empenhado em avaliar como vivemos através das imagens e das palavras) perguntava porque é que se citavam os “mercados” como uma espécie de entidade mágica para explicar todos os dramas decorrentes da circulação do dinheiro, sem dizer o que quer que fosse sobre as “pessoas” que fazem existir esses mesmos “mercados”. Lembrava ele uma cândida verdade: “Os mercados são pessoas”.
Algo de semelhante se poderá dizer a propósito da circulação do dinheiro. Afinal de contas, o dinheiro somos nós: o essencial das relações em sociedade pressupõe alguma componente ou troca financeira. No universo das imagens, seria interessante, por exemplo, mostrar as moedas e as notas que fazem um salário mínimo, colocando ao lado as moedas e as notas ganhas por alguns profissionais de futebol. Entenda-se: não por qualquer suspeita ou insinuação malévola. Apenas para termos uma outra perspectiva sobre o mundo à nossa volta.