sexta-feira, maio 22, 2020

Cannes: como defender o cinema?

Thierry Frémaux
O novo filme de Spike Lee não poderá estar em Cannes porque… não haverá Festival de Cannes. Para Thierry Frémaux, delegado-geral do certame, este é um bom momento para repensar o futuro do próprio cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Maio), com o título 'A política de Cannes'.

Durante e, por certo, após a pandemia, vale a pena tentar enunciar algumas ideias programáticas para defesa dos filmes. Entenda-se: não apenas medidas transitórias para lidar com os dramas gerados pelo confinamento, antes ideias que possam contribuir para esclarecer e reforçar o futuro do cinema.
Eis oito princípios possíveis: “1) Repensar os circuitos de financiamento. 2) Proteger os criadores, reforçando os direitos de autor. 3) Fazer com que as plataformas estrangeiras contribuam significativamente para o financiamento do cinema francês e europeu. 4) Negociar arduamente com os GAFA (Google + Apple + Facebook + Amazon) para que a utilização das obras seja correctamente remunerada e os impostos pagos. 5) Combater a pirataria que é um crime cultural. 6) Reinstalar programas de cinema na escola. 7) Reflectir com as televisões sobre as suas obrigações, e também os seus deveres, para que contribuam ainda mais para a produção de obras que não sejam unicamente pensadas para o horário nobre. 8) Adaptar a cronologia dos media ao século XXI, para que cinema e audiovisual coabitem no interesse de todos, sem excluir ninguém.”
A referência ao “cinema francês e europeu” permite deduzir de onde provêm tais linhas programáticas — de França, claro. Mas não de um qualquer programa político. Onde estão, afinal, os políticos europeus (incluindo os franceses, criadores de um elaborado sistema de protecção do seu cinema nacional) que tenham enunciado princípios deste teor, com a mesma clareza e convicção?
Cada leitor terá a sua resposta. Digamos apenas que a apresentação de tais princípios provém de um lugar emblemático no mundo global do cinema, envolvendo a complexidade dos seus circuitos financeiros e o esplendor do seu património mitológico. A saber: o Festival de Cannes. Mais exactamente, são palavras de Thierry Frémaux, delegado-geral do certame (também director do Instituto Lumière, em Lyon), em entrevista à revista L’Obs, publicada no dia 11 de maio.
A entrevista serviu, antes do mais, para dar uma notícia que os cinéfilos tinham pressentido como inevitável: depois de vários adiamentos, a 73ª edição dos Festival de Cannes, marcada para esta altura (12-23 maio), foi cancelada. Não haverá sequer uma “versão” online do certame, já que, segundo Frémaux, um festival serve para “estarmos juntos”, abrindo a cada filme apresentado “uma aventura no grande ecrã”.
Estranhamente (ou não…), as sugestões programáticas de Frémaux geraram um eco débil, para não dizer nulo. E, no entanto, não é todos os dias que lemos ou ouvimos alguém a resumir com tal precisão o labirinto de temas e interrogações em que, aqui e agora, os filmes existem (ou não existem…). Lembrando a especificidade artística do cinema e, por isso, a importância da defesa dos respectivos postos de trabalho, Frémaux evoca mesmo a noção de povo sem que isso se confunda com tantas e tão fúteis formas de demagogia: “Temos de dar provas de pedagogia popular para que todos se comprometam na salvaguarda daquilo que tem um preço e um valor.”
Nada disto, entenda-se também, arrasta qualquer maniqueísmo “cultural” que acabe por ceder à estupidez “política” segundo a qual se trata de salvar a “pureza” europeia da “impureza” do cinema dos EUA. Ficamos, aliás, a saber curiosas notícias sobre o novo filme de Spike Lee, Da 5 Bloods, centrado num grupo de afro-americanos, veteranos do Vietname, já com 70 anos feitos, que decidem regressar aos cenários da guerra para esclarecer algumas pontas soltas das suas próprias memórias…
Produzido pela Netflix, o filme seria uma das grandes revelações do festival deste ano (extra-concurso, uma vez que Spike Lee iria assumir a presidência do júri oficial). O que, além do mais, nos leva a supor que o diferendo Cannes/Netflix — decorrente da resistência da plataforma de streaming a estrear muitos dos seus filmes nas salas escuras e dos consequentes protestos dos exibidores franceses — poderá estar a evoluir de forma interessante, “sem excluir ninguém”.
Para já, sabemos que Da 5 Bloods estará disponível na Netflix a partir de 12 de junho. E que, mais do que nunca, a “pedagogia popular” de Cannes merece ser pensada. Com as consequências políticas que tal pensamento implica.