Na situação de pandemia que estamos a viver, há filmes a estrear directamente em plataformas de “streaming”. É o caso de Quarto 212, do francês Christopher Honoré: em cena está a crise amarga e doce de um casal interpretado por Chiara Mastroianni e Benjamin Biolay — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Abril).
São muitas as transformações, mais ou menos drásticas, que estão a acontecer nos mercados de cinema. Na prática, o calendário de todos os eventos — desde os festivais até ao lançamento de novos títulos — está a ser revisto e adaptado às circunstâncias da pandemia de covid-19. Em contexto português, Quarto 212, de Christophe Honoré, é um dos exemplos: a estreia agendada para 19 de março não chegou a acontecer e, agora, o filme pode ser descoberto na plataforma Filmin — chegou o tempo das estreias virtuais.
Estamos perante mais uma ilustração do gosto romanesco (não necessariamente romântico) de Honoré. O seu primeiro e fundamental valor é o respeito e, num certo sentido, a admiração pela densidade emocional de cada personagem. Encontramos tal atitude nos momentos mais crus da sua filmografia — com destaque para Agradar, Amar e Correr Depressa (2018), uma história de amor assombrada pela sida, a meu ver um dos seus melhores filmes —, mas também em registos ligeiros, próximos de uma certa tradição do musical, como As Canções de Amor (2007).
Quarto 212 pertence a esse domínio mais leve ou, se quiserem, mais irónico. A crise do casal Maria/Richard, interpretado por Chiara Mastroianni e Benjamin Biolay (que já foram casados na vida real), surge encenada como uma farsa cujo eventual dramatismo vai sendo temperado por um desconcertante humor. Isto porque, após uma conversa mais amarga sobre a infidelidade de Maria, ela decide ir passar a noite a um hotel. Acontece que o hotel fica exactamente em frente da casa do casal, sendo a noite pontuada por uma série de “encontros” de Maria com personagens da sua história, incluindo Richard vinte anos mais novo (interpretado por Vincent Lacoste).
O filme seduz pelo seu elenco (Chiara Mastroianni ganhou o prémio de melhor actriz na secção “Un Certain Regard” de Cannes/2019) e também pelo bizarro artificialismo da sua encenação. Há mesmo várias situações em que Maria e o Richard mais jovem, à janela do hotel, contemplam o Richard do presente em que a história se situa… Ao mesmo tempo, dir-se-ia que, desta vez, Honoré se interessa menos pelas vivências das suas personagens e mais pelo desconcertante “teatro” de cenários espelhados que quis fabricar.
Quando Quarto 212 arranca, em particular durante a breve deambulação de Chiara Mastroianni pelas ruas de Paris (que serve de genérico ao filme), reencontramos uma das componentes mais fascinantes do cinema de Honoré: a personagem existe através de um relação sensual com o próprio cenário porque, de facto, a vibração dos seus volumes, cores e sons possui também qualquer coisa de uma personagem — as ruas apresentam-se como um “palco” que o cinema regista e, mais do que isso, reinventa. A partir do momento em que tudo se transfere para os cenários fabricados em estúdio, incluindo mesmo algumas imagens “aéreas” que dão a ver as paredes artificiais (para quê?…), a ostentação do dispositivo sobrepõem-se à celebração das personagens.
Honoré, convenhamos, é um verdadeiro cinéfilo. E não será abusivo considerar que o seu romanesco pertence a uma linhagem nobre do cinema francês que passa pelas referências tutelares de Jean Renoir (1894-1979) e François Truffaut (1932-1984). Com Quarto 212, apetece dizer que ele quis retomar a herança de outro mestre, Jacques Demy (1931-1990), nomeadamente de um filme como Um Quarto na Cidade (1982) — para lá dos títulos, a sugestão de alguma cumplicidade estética provém, sobretudo, da utilização do estúdio como lugar de uma metódica transfiguração “teatral”da acção e, em particular, das relações passionais. Não lhe fica mal o gosto e o risco de tal proximidade, mas falta-lhe a intensidade vital dos corpos e das vozes do cinema de Demy. Acontece aos melhores.
Quando Quarto 212 arranca, em particular durante a breve deambulação de Chiara Mastroianni pelas ruas de Paris (que serve de genérico ao filme), reencontramos uma das componentes mais fascinantes do cinema de Honoré: a personagem existe através de um relação sensual com o próprio cenário porque, de facto, a vibração dos seus volumes, cores e sons possui também qualquer coisa de uma personagem — as ruas apresentam-se como um “palco” que o cinema regista e, mais do que isso, reinventa. A partir do momento em que tudo se transfere para os cenários fabricados em estúdio, incluindo mesmo algumas imagens “aéreas” que dão a ver as paredes artificiais (para quê?…), a ostentação do dispositivo sobrepõem-se à celebração das personagens.
Honoré, convenhamos, é um verdadeiro cinéfilo. E não será abusivo considerar que o seu romanesco pertence a uma linhagem nobre do cinema francês que passa pelas referências tutelares de Jean Renoir (1894-1979) e François Truffaut (1932-1984). Com Quarto 212, apetece dizer que ele quis retomar a herança de outro mestre, Jacques Demy (1931-1990), nomeadamente de um filme como Um Quarto na Cidade (1982) — para lá dos títulos, a sugestão de alguma cumplicidade estética provém, sobretudo, da utilização do estúdio como lugar de uma metódica transfiguração “teatral”da acção e, em particular, das relações passionais. Não lhe fica mal o gosto e o risco de tal proximidade, mas falta-lhe a intensidade vital dos corpos e das vozes do cinema de Demy. Acontece aos melhores.