segunda-feira, abril 06, 2020

João Botelho “desmonta” a baleia de Melville

Vários cineastas portugueses estão a disponibilizar alguns dos seus filmes na Net. De João Botelho podemos ver A Baleia Branca, uma Ideia de Deus, documentário sobre uma encenação de António Pires inspirada em Moby Dick — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Abril).

Eis uma evidência histórica: desde os seus tempos primitivos, o cinema tem mantido uma relação regular, rica e diversificada, de reprodução e recriação, com as componentes do teatro. E, claro, não apenas porque são infinitas as adaptações cinematográficas de peças teatrais. Sobretudo porque as linguagens do filme mantêm uma cumplicidade, ora linear, ora ambivalente, com os elementos específicos do palco — o documentário A Baleia Branca, uma Ideia de Deus (2007), de João Botelho, é um belo conjunto de variações sobre essa coexistência, o seu didactismo e também a sua sensualidade.
O filme, produzido pela empresa Ar de Filmes para a RTP, é um dos títulos actualmente disponibilizados online por vários cineastas portugueses — podemos encontrá-lo na plataforma Vimeo. Na sua origem está um espectáculo intitulado Moby Dick, inspirado no romance de Herman Melville, que esteve em cena em Lisboa, no Teatro São Luiz, entre 18 de janeiro e 3 de março de 2007.
Tendo como base uma adaptação de Maria João Cruz, a encenação de António Pires [foto] aposta numa sugestiva ambiguidade formal, de algum modo sublinhada e intensificada pela notável concepção cenográfica de João Mendes Ribeiro. Tal ambiguidade encontra o seu primeiro e decisivo eco no modo de dizer, ora “descritivo”, ora “dramático”, dos actores — são eles: Maria Rueff, Miguel Guilherme, Ricardo Aibéo, Rui Morisson, Miguel Borges, Graciano Dias, Milton Lopes e João Barbosa.
Herman Melville
Em tom subtil e envolvente, a realização de Botelho apropria-se dessa ambiguidade, criando um objecto também ele “dividido” no seu labor estético: por um lado, A Baleia Branca, uma Ideia de Deus possui as qualidades informativas de um “making of” do espectáculo, dando-nos a ver (e escutar) a evolução do texto nas vozes dos actores, a construção da sua relação com a música de Paulo Abelho e João Eleutério e, por fim, a integração de tudo isso no espaço gerado pelos elementos cenográficos; por outro lado, estamos perante um ensaio, ou melhor, um bloco-notas sobre a demanda da identidade humana herdada de Moby Dick, cruzando as imagens do palco com alguns “exteriores” (o mar, a compulsão das águas…).
Numa deliciosa atitude criativa, com raízes na obra tutelar de Jean-Luc Godard, Botelho trata as próprias imagens como elementos naturais do seu bloco-notas, “sobre” elas escrevendo e inscrevendo apontamentos que diversificam e ampliam as possibilidades do olhar do próprio espectador. A Baleia Branca, uma Ideia de Deus foi apresentado na edição de 2018 do LEFFEST, quando o festival assinalou os 40 anos de actividade do realizador.