Foto: STUFISH |
E que histórias nos conta Madonna? Primeiro fala de resistência e de luta. Madame X é na verdade um coletivo, uma multiplicação de Madonna em várias personagens. E quando canta Vogue várias figuras idênticas chegam mesmo a caminhar pelo palco, obrigando-nos a procurar qual delas é mesmo a que Madonna veste naquele momento. O manifesto de Madame X serve de base ao espetáculo. E entre as primeiras canções fica claro que a mulher lutadora está ali, de forma talvez mais evidente do que nunca, a batalhar pelas causas em que acredita, de uma clara postura de antagonismo perante a atual administração americana – chega mesmo a dizer que um psicopata está a mandar no seu país – ao levantar da voz pela liberdade e igualdade, vincando o valor do respeito pela identidade de cada um. Do acesso às armas legalmente permitido nos EUA às lutas da comunidade LGBT+, Madonna fez inclusivamente de I Rise (que inclui imagens de manifestações e as palavras de uma ativista que sobreviveu a um tiroteio escolar) uma condensação do Manifesto, abandonando o palco de braço (e punho) no ar. Antes já American Life, uma canção que alerta para o modo como o “sonho americano” parece ter desmoronado, tinha representado outro episódio de evidente manifestação de uma voz política, a mesma que nos alerta em Future para o futuro ameaçado em que todos vivemos.
Se a dimensão política é uma das forças motrizes tanto do álbum Madame X como do espetáculo que agora o transforma numa realidade física, a história pessoal da própria Madonna é outra das narrativas que habitam as entranhas do que agora ganha forma em palco. Ela mesma começa por nos contar como, pelo filho, veio parar a Lisboa... E daí como, através de uma amiga colombiana que aqui vive (imitou sotaque e tudo), acabou por ser desafiada a sair de casa, começando a descobrir outras realidades. E falou de música. De Dino d’Santiago, que a levou a descobrir casas de fado. De Celeste Rodrigues, com quem chegou a cantar... Chamou à boca de cena o jovem Gaspar Varela, bisneto de Celeste, que uma vez a desafiara a cantar um fado. E desta vez, sublinhando quão bom era não ter de explicar a uma plateia o que era o fado, cantou um perante uma sala que, mesmo carregada de visitantes (muitos espanhóis, italianos, alemães), estava cheia de gente que fala português. Quando o pano voltou a subir o palco tinha-se transformado numa casa de fados, na qual Madonna concentrou algumas das canções em que usa a língua portuguesa – como Killers Who Are Partying e Crazy, alargando o universo de referências à música latina em geral juntando citações a La Isla Bonita ao tema Welcome To My Fado Club e acabando por cantar ali Medellín, o cartão de visita de Madame X. A aproximação a esta sequência focada em Lisboa – o local que inspirou o, como disse Madonna – já se tinham escutado as batukadeiras de Cabo Verde no brilhante Batuka. E coube ao dueto com Dino d’Santiago – que tal como na primeira noite voltou a palco e foi apresentado como o “rei do funaná” – outro dos episódios mais emotivos, entoando, com a sala a cantar, Sodade, de Cesária Évora. Os sabores portugueses, da amarguinha ao vinho do porto (branco) e ao bacalhau não faltaram... Assim como o único palavrão que sabe em português, que começa com a letra “c” e rima com alho...
Apesar do tom sombrio de algumas sequências nas quais o espetáculo traduz o estado do mundo e o modo como Madonna usa a sua voz, a luz não faltou a Madame X. A sequência lisboeta foi disso um exemplo. Todavia, ao contrário de muitas outras digressões de Madonna, o espetáculo Madame X não cede no sentido de combate e identidade que desenha a qualquer apelo para fugas para festa e nostalgia com velhos êxitos. Pelo contrário, não só é curta a presença de temas antigos num alinhamento que valoriza (e ainda bem) a presença do álbum Madame X como muitas vezes – como em American Life, Express Yourself ou Like a Prayer – mostra como os alicerces das ideias que explora neste disco na verdade estavam já lançados por canções de outros tempos. O espetáculo foge assim das lógicas mais habituais de diálogo do novo com uma seleção “best of” de discos anteriores. O passado de Madonna serviu aqui a narrativa, levando a cena outras expressões da multiplicação de si mesma em várias personagens... E basta olhar para a sua história de canções e imagens para notar que, na verdade, esta ideia já a acompanha há muito.
Sem a dinâmica atlética que vimos, por exemplo, na digressão que sucedeu a Confessions on a Dance Floor, o espetáculo procura outros caminhos. Há bailarinos (que vestem também a pele de várias personagens) e os músicos só ocasionalmente estão em palco. Uma vez mais a dimensão teatral das opções da encenação demarca a personalidade desta visão, até mesmo ao diluir sem a nitidez mais compartimentada de digressões anteriores, as transições entre os quadros que desenham a sucessão de momentos (como se dos diversos atos de uma peça, ou ópera se tratasse).
Só não brilha o momento do leilão da polaroid... Pouca gente vai para um espetáculo com molhos de notas no bolso... A coisa acaba necessariamente fechada entre fãs alertados... E talvez na sala houvesse quem, sem notas na hora mas com contas mais avultadas, tivesse vontade de ajudar (o dinheiro da venda da polaroid reverte para a obra Raising Malawi de Madonna).
Uma nota final para o prólogo. Ou primeira parte, se preferirem. Gaspar Varela (guitarra portuguesa), Jéssica Pina (trompete), Miroca Paris (guitarra) e Carlos Mil-Homens (percussão) apresentaram-se na boca de cena, com sala a meia luz, antes mesmo de começar o espetáculo. Era como um Madame X Tour Combo, vincando em tons quentes abordagens a várias canções, entre as quais versões de Secret, Like a Virgin, Don’t Tell Me ou Who’s That Girl perante uma plateia que conhecia as letras e cantou...
Os telemóveis? Sim, grande ideia... Que bom que foi ver uma sala a olhar para o palco sem ecrãs pelo meio e braços esticados pela frente a captar imagens que nunca mais vai ver ou a fazer selfies... Toda a gente estava avisada. E a coisa correu bem. Não era má ideia repetir em mais ocasiões. Nada má.