Hannah Arendt |
Podemos reencontrar o fulgor do pensamento de Hanna Arendt através da edição do livro Pensar sem Corrimão: as suas reflexões ajudam-nos a avaliar o valor da ação, a possibilidade da felicidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Janeiro).
Gosto das fotografias de Hannah Arendt (1906-1975) a fumar. Aliás, será quase uma redundância lembrar que a podemos ver em muitas situações, fotografadas ou filmadas, a fumar. É sabido que ela foi uma fumadora inveterada, existindo muitos retratos que ilustram o seu hábito, por certo influente na evolução da sua condição física — sofreu mesmo um ataque cardíaco durante uma conferência na Escócia, em 1974, cerca de um ano antes do seu falecimento.
Num dos seus mais conhecidos portfolios, há uma imagem em que a vemos com um cigarro na mão direita, um cinzeiro à sua frente, olhando para o exterior do enquadramento. Dir-se-ia que a contundência pacífica do olhar se apresenta confirmada pela elegância teatral das mãos. Recentemente, reencontrei essa imagem na lombada de uma magnífica antologia de textos de Arendt, Pensar sem Corrimão (ed. Relógio D’Água, 2019). Com um detalhe inevitavelmente irónico que registo por mera curiosidade: a fotografia de Arendt, publicada na badana do livro, foi reenquadrada, não sendo visível o cigarro na sua mão.
Em qualquer caso, insisto na importância de uma figura que, para a posteridade, se expôs assim enquanto imagem. Recorde-se, a propósito, a brilhante composição de Barbara Sukowa no filme que se chama, precisamente, Hannah Arendt (2012), de Margaret von Trotta, centrado no período em que Arendt acompanhou, em Jerusalém, como repórter da revista The New Yorker, o julgamento do nazi Adolf Eichmann, dessa experiência surgindo o livro Eichmann em Jerusalém - Uma Reportagem sobre a Banalidade do Mal (ed. Tenacitas, 2013). Sukowa está no poster do filme, de perfil, a fumar, encimada pela frase: “As suas ideias mudaram o mundo.”
As ideias, por certo, não os cigarros. Com ou sem fumo a envolvê-las, as imagens de Arendt transportam sempre (para mim, em todo o caso) uma sugestão de movimento — não necessariamente como coisa visível, antes como impulso que não posso deixar de associar à ação, valor primordial em todo o seu pensamento.
Num texto datado de 1960, incluído em Pensar sem Corrimão, Arendt propõe-se mesmo reflectir sobre o par formado pela “ação” e a “busca da felicidade”. Como refere logo a abrir, não se trata de explorar o “significado histórico e político” do assunto. O seu propósito “consiste em levantar a questão de uma possível relação entre a ação e a felicidade, numa tentativa de descobrir o autêntico e não-ideológico fundo de experiência por trás desta busca desconcertante.”
São quase duas dezenas de páginas impossíveis de resumir (como todo o livro, aliás, entregue a esse trabalho, árduo e pedagógico, que consiste em pensar como quem sobe ou desce escadas “sem corrimão”). E tanto mais quanto os mais poderosos discursos contemporâneos, sobretudo os de natureza publicitária, nos garantem que a felicidade é uma consequência linear do novo telemóvel que podemos adquirir ou do consumo de um “gadget” associado ao nome de algum jogador de futebol.
Ainda assim, vale a pena referir que, a certa altura, valorizando sempre a dimensão humana da acção, Arendt recorda duas palavras que, agora, “dificilmente alguma vez juntaríamos, mas que constituíam uma expressão corrente no século XVIII.” São elas: “felicidade pública”. Arendt acrescenta mesmo que, aquando da redacção da Declaração da Independência dos EUA, Thomas Jefferson alterou a identificação de três “direitos inalienáveis”. Ou seja: “vida, liberdade e propriedade” deram lugar a “vida, liberdade e busca de felicidade.”
Arendt ajuda-nos a reenfrentar a questão da ação como uma clivagem dramática, tão essencial quanto irredutível, entre o individual e o colectivo. Nos diálogos registados durante uma conferência de 1972, formula esta noção cristalina: “Acredito mesmo que só podemos agir em conjunto, e acredito mesmo que só podemos pensar em solitário.”
Não terá sido por acaso que num filme da realizadora Anne-Marie Mieville lançado em 1997, Nous Sommes Tous Encore Ici (à letra: “Ainda estamos todos aqui”), um outro realizador, o seu companheiro Jean-Luc Godard, surge sozinho num palco para declamar algumas frases de um livro de Arendt, As Origens do Totalitarismo (ed. Dom Quixote, 2017). Recorda ele uma doença social [video]: “a maldição de nos tornarmos desumanos numa sociedade em que todos parecem supérfluos.” Sem querer condicionar o efeito de tais palavras no leitor, permito-me referir que, antes de as citar, Godard acende um cigarro.