Paul Walter Hauser |
E aqui está um grande filme para começar o ano cinematográfico: em O Caso de Richard Jewell, Clint Eastwood evoca a saga trágica do segurança dos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, que descobriu uma bomba colocada num recinto público: uma verdadeira lição narrativa e filosófica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Janeiro).
Decididamente, Clint Eastwood é, cada vez mais, um cineasta realista. Agora, com O Caso de Richard Jewell, um ano depois de 15:17 Destino Paris e The Mule/Correio de Droga (ambos com data de 2018), volta a realizar um filme baseado em factos verídicos. Richard Jewell foi motivo de grande cobertura mediática, em 1996, na qualidade de segurança dos Jogos Olímpicos de Atlanta: por um lado, descobriu uma bomba no parque olímpico, durante a realização de um concerto, contribuindo com a sua acção para salvar algumas centenas de pessoas; por outro lado, acabou por ser considerado suspeito de cumplicidade com os autores desse acto terrorista, tendo sido sujeito pelo FBI a intenso escrutínio.
Em qualquer caso, entenda-se, o realismo de Eastwood está longe de resultar apenas da abordagem de situações e personagens que realmente existem ou existiram. Lembremos o exemplo emblemático, quase abstracto, de Imperdoável (1992), porventura o seu filme mais conhecido da maioria dos espectadores: a abordagem do velho Oeste envolve toda uma “tese” crítica em relação ao tratamento da violência pelos “westerns” mais tradicionais; ao mesmo tempo, é o obsessivo realismo dos detalhes que lhe confere uma inconfundível e contagiante vibração dramática.
Richard Jewell |
O Caso de Richard Jewell é tanto mais sintomático das preocupações sociais de Eastwood (89 anos, completados a 31 de Maio) quanto a sua complexidade legal e emocional envolve dois motivos nucleares do imaginário político dos EUA: desde logo, a questão da lei como fundamento de qualquer vivência democrática; depois, o papel decisivo dos meios de comunicação no conhecimento, e na própria definição, da comunidade nacional.
Daí a importância de duas personagens secundárias, plenas de implicações concretas e simbólicas: Tom Shaw, o agente do FBI que conduz a investigação sobre Jewell, e Kathy Scruggs, a jornalista que acompanha o caso. A sua importância na dramaturgia do filme surge, aliás, reforçada pela subtileza dos respectivos intérpretes, respectivamente Jon Hamm e Olivia Wilde: ele procura a verdade dos factos através de uma narrativa “antecipada” que carece de validação; ela celebra o valor de revelação desses mesmos factos, ainda que a sua verdade possa ser instrumentalizada.
Seria precipitado considerar que tal visão transforma Eastwood num cineasta “anti-sistema” (ou com qualquer outro rótulo mais ou menos fútil que atraia especulações gratuitas). Em boa verdade, no sentido mais primitivo, e também mais filosófico, das palavras, ele é um cineasta da Lei e da Ordem, marcado por um valor visceralmente americano: nenhuma defesa do colectivo pode legitimar o esmagamento arbitrário das existências individuais.
Acontece que, quer no sentido policial (o FBI), quer no plano mediático (o trabalho jornalístico), a dita verdade dos factos não esgota a verdade dos acontecimentos e seus protagonistas. O Caso de Richard Jewell é mesmo um filme sobre essa infinita complexidade, tanto maior quanto a sua organização narrativa — alicerçada num notável argumento, escrito por Billy Ray — expõe o espectador a um desafio intelectual e moral raro no cinema contemporâneo. A saber: em cada uma das personagens (sem esquecer a admirável mãe de Jewell, interpretada pela magnífica Kathy Bates), há não apenas uma fatia de vida, mas também uma fatia de verdade, mesmo quando a realidade resiste a qualquer resumo redentor, expondo os mais perturbantes contrastes e contradições.
Daí o destaque que merece a composição de Richard Jewell por Paul Walter Hauser (vimo-lo como secundário em Eu, Tonya ou BlacKkKlansman). Também aqui, o mais imediato efeito realista é impressionante: Hauser apresenta incríveis semelhanças físicas com o verdadeiro Jewell (falecido em 2007, aos 44 anos, na sequência de complicações motivadas por diabetes). Mas a sofisticação da sua interpretação está para além disso. Longe de qualquer santificação (ou demonização, o que viria dar no mesmo), o Richard Jewell do filme é um ser à deriva, tão estranho quanto comovente, de alguma maneira não conseguindo avaliar as implicações públicas da própria tragédia em que, forçado pelas circunstâncias, adquire um papel central.
Digamos, para simplificar, que já vimos interpretações muito menos competentes que o trabalho de Hauser a ganhar Oscars. Não que o filme (ou qualquer filme) necessite de prémios para ilustrar o seu carácter excepcional. O certo é que, neste tempo dominando pelo marketing dos super-heróis, Eastwood continua a ser capaz de lidar com heróis ou anti-heróis sem menosprezar a sua singularidade humana — o ano cinematográfico de 2020 começa com um grande acontecimento.