Nicholas Ray |
Em 1979, o alemão Wim Wenders filmou o americano Nicholas Ray em Nick’s Movie: do seu encontro resultou um objecto inclassificável, algures entre documentário e ficção, que vai reaparecer nas salas de cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Dezembro).
Esta imagem de Nicholas Ray tem 40 anos. A sua vibração, misto de angústia e ternura, continua a tocar-nos. Atrevo-me a pensar que mesmo aqueles que não possuam a mais pequena chave para a contextualizar (quem, como, onde), não se mostrarão indiferentes ao olhar intenso e cansado de Nicholas Ray, à elegância da sua mão, à pose natural contaminada por uma sensação de monumentalidade.
O regresso desta imagem, ou melhor, do filme a que pertence — Nick’s Movie - Um Acto de Amor (1980), de Wim Wenders — acontece por estes dias nas nossas salas escuras (dia 11, no Espaço Nimas, em Lisboa; dia 19, no Teatro Campo Alegre, no Porto; mais tarde, em Coimbra, Figueira da Foz e outras cidades). Trata-se de um dos quinze títulos de um ciclo dedicado ao cinema de Wenders. Nele estarão os mais famosos, como Paris, Texas (1984), As Asas do Desejo (1987) ou Lisbon Story - Viagem a Lisboa (1994), este em cópia restaurada 4K. Mas há também algumas preciosidades pouco vistas como Movimento em Falso (1975), filme de estreia de Nastassja Kinski (aos 14 anos) e um dos títulos de Wenders em cujo argumento trabalhou Peter Handke, ou Tokyo-Ga (1985), viagem documental pelo Japão à procura das raízes da obra de Yasujiro Ozu.
O impacto original de Nick’s Movie [por vezes também referido como Nick's Film] não pode ser dissociado de uma perturbação ligada a uma genuína dinâmica de pensamentos cinéfilos que, hoje, com a aceleração irracional dos consumos, não parece possível. O fascínio que tudo isso envolveu começou, aliás, na dificuldade de identificação do próprio objecto. Na verdade, o título Nick’s Movie (“O filme de Nick”) não foi o primeiro a ser adoptado, tendo começado por se chamar Lightning Over Water (à letra: “Relâmpago sobre a água”), título de uma canção interpretada na cena de abertura por Ronee Blakely.
A perturbação decorre do próprio “tema”. Estava-se em 1979 e Nick, aliás, Nicholas Ray tinha um cancro terminal. Aceitou ser filmado por Wenders num dispositivo documental que, em qualquer caso, iria incluir algumas situações assumidamente ficcionais. Por um lado, tratava-se de renovar laços de cumplicidade que já tinham levado Ray a trabalhar com Wenders, integrando o elenco de O Amigo Americano (1977), também presente neste ciclo; por outro lado, o encontro serviria para trocar ideias sobre o estado do cinema, de alguma maneira funcionando como passagem de testemunho de um dos mestres de Hollywood, autor de clássicos como Filhos da Noite (1948), Johnny Guitar (1954) ou Fúria de Viver (1955).
Importa, assim, tentar perceber o que acontece na filmagem de Ray por Wenders (e faço questão em usar a palavra “filmagem” e não “gravação”, essa obscenidade que continua a piratear muitos discursos sobre o audiovisual, como se a nobre história do cinema devesse submeter-se à linguagem de produção das telenovelas). Ao registar a agonia de Ray, Wenders está, afinal, a perguntar-se, e a perguntar-nos, que lugar ocupa o acto de filmar no interior do viver e morrer que o cinema nos devolve.
A certa altura, há mesmo um luminoso diálogo em que Wenders reconhece a ambivalência estética que o seu labor pode envolver. Dito de outro modo: o cineasta alemão confessa ao mestre americano que, se se começar a sentir de alguma maneira “seduzido” pelo processo dramático que Ray está a atravessar, aí será levado a abandonar o próprio projecto de fazer um filme com ele. Na sua fragilidade e concisão, Ray garante que isso não vai acontecer e aconselha-o a continuar a filmar — assistimos, assim, à definição de um genuíno contrato de filmagem.
Nicholas Ray viria a falecer a 16 de junho de 1979, contava 67 anos, antes da estreia de Nick’s Movie. O filme acaba por ficar como o resultado desse compromisso ético e estético que se estabeleceu entre dois homens que, afinal, se encontram para celebrar aquilo que os une para além da morte. A saber: o amor pelo cinema.