quinta-feira, novembro 21, 2019

Willem Dafoe
— a última tentação cinéfila

Willem Dafoe
A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO (1988)
O actor Willem Dafoe é um dos homenageados do Lisbon & Sintra Film Festival: entre os seus títulos mais emblemáticos inclui-se A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, filme gerado num contexto de produção de Hollywood que já não existe — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Novembro).

Willem Dafoe, americano, 64 anos, é um actor gloriosamente inclassificável. Não encaixando no típico estatuto de “estrela”, também nunca se deixou devorar por qualquer imagem estereotipada (à maneira de um Robert Downey Jr., talento invulgar há mais de uma década desperdiçado na personagem de Homem de Ferro dos filmes da Marvel).
A versatilidade de Dafoe faz com que, numa filmografia de mais de uma centena de títulos, haja momentos dispensáveis. Ainda assim, todos eles reflectem uma disponibilidade criativa e um genuíno sentido de risco raros no universo dos actores, americanos ou não. O ciclo de homenagem que lhe está a ser dedicado pelo LEFFEST (a decorrer até dia 24) é sintomático das suas qualidades. Na sua didáctica brevidade, inclui mesmo dois filmes preciosos, muito pouco vistos: Viver e Morrer em Los Angeles (1985), policial apocalíptico de William Friedkin, e Auto Focus (2002), de Paul Schrader, admirável retrato interior da televisão dos EUA nos anos 60/70 que, além do mais, nunca teve estreia comercial no nosso país.
Exemplo radical dos riscos que Dafoe tem sabido correr encontramo-lo em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, também incluido na programação do festival. Três décadas depois, a memória das suas atribulações “polémicas” não basta para compreendermos a origem filosófica e as motivações afectivas do trabalho de Scorsese. Não se trata, de facto, de um medíocre objecto de “contestação” religiosa, desrespeitador das crenças seja de quem for. A sua perturbação começa no facto de o autor se situar, convictamente, no interior da própria religião que encena (ou reencena, já que estamos perante uma personagem presente em todas as épocas da história do cinema).
O regresso a A Última Tentação de Cristo adquire novos e pertinentes contornos simbólicos através de declarações recentes de Scorsese, considerando que os actuais filmes de super-heróis, nomeadamente com chancela Marvel/Disney, já “não são cinema”. O seu ponto de vista tem suscitado muitas reacções mais ou menos severas (inclusive de Robert Downey Jr…), quase todas enredadas num maniqueísmo pueril entre “bom” e “mau” cinema. De tal modo que o próprio Scorsese decidiu sistematizar as suas ideias num magnífico artigo publicado em The New York Times (4 nov.). No centro da sua argumentação está um duplo reconhecimento: primeiro, que os filmes de super-heróis resultam da aplicação de fórmulas de produção e narrativa sem risco, ignorando o “confronto com o inesperado” que o cinema sempre procurou; segundo, que tais filmes detêm um poder de ocupação das salas de todo o mundo que leva à marginalização de tudo o que é diferente, destruindo a própria diversidade cinematográfica (e, acrescento eu, deseducando os espectadores para essa mesma diversidade).
Qual a relação desta discussão com A Última Tentação de Cristo? Pois bem, este é um filme gerado no coração de Hollywood, com chancela de um grande estúdio (Universal Pictures), parecendo difícil imaginar que, agora, algum grande estúdio desse luz verde a semelhante projecto. É essa a tragédia: a indústria audiovisual mais poderosa do mundo está a ceder a uma lógica normativa que pode anular a versatilidade artística e comercial que define mais de um século da sua (e da nossa) história.
Sintoma esclarecedor: o projecto do mais recente filme de Scorsese, O Irlandês, foi rejeitado pelos estúdios de Hollywood, acabando por ser financiado por uma plataforma de “streaming”, a Netflix. O que, entenda-se, nos conduz a outra tragédia dos nossos dias: a Netflix dá-se ao luxo de não exibir o filme nas salas de muitos países, incluindo Portugal, aliás nem sequer parecendo empenhada em promover minimamente o seu “produto”. No respectivo site, gastam-se meia dúzia de linhas (literalmente!) para se concluir que se trata de um “aclamado filme de Martin Scorsese”. Sinal dos tempos: com a “aclamação” virtual morre o gosto cinéfilo.