quarta-feira, setembro 18, 2019

Conversa com Paulo Branco [1/2]

O filme A Herdade (estreia quinta-feira, dia 19) é uma realização de Tiago Guedes que nasceu de uma ideia do produtor Paulo Branco. Trata-se, afinal, de revisitar um tempo português, pré e pós-25 de Abril, começando num sistema quase feudal, passando pela Revolução e chegando ao período do neo-liberalismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Setembro).

Em trânsito. Sempre. Poucos momentos antes de começar a nossa conversa, até mesmo as fotografias em pose metódica e controlada, podiam ser apresentadas com uma legenda insólita, mas realista: “Vamos a isto, que eu tenho um avião para apanhar…”
Assim é, de facto: o produtor Paulo Branco está a poucas horas de embarcar para o Canadá. Objectivo: acompanhar o filme de Tiago Guedes, A Herdade, no Festival de Toronto, alguns dias depois da sua passagem em Veneza, cuidando das respectivas vendas para o mercado internacional (já depois deste encontro, veio a saber-se que A Herdade será o representante oficial de Portugal na candidatura a uma nomeação para o Oscar de melhor filme estrangeiro).
Mesmo não esquecendo a espantosa diversidade de autores que integram a lista de mais de duas centenas de filmes produzidos por Paulo Branco — Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Raúl Ruiz, Wim Wenders, David Cronenberg, etc. —, A Herdade começou por surgir aos olhos do público como um “projecto de produtor”. Será que faz sentido identificá-lo como tal? “Na sua génese é, de facto, um projecto de produtor. Isto porque há alguns anos iniciei vários filmes a que tinha uma ligação pessoal mais directa.”
Em qualquer caso, não era a primeira ocasião em que tal acontecia: ”Várias vezes sugeri a um ou outro realizador que, por questões de oportunidade, fazia sentido avançar para um determinado filme — aconteceu com Manoel de Oliveira ou Raúl Ruiz, na certeza de que foram sempre projectos dos próprios. A Herdade nasceu quando Carlos Saboga estava a desenvolver o argumento de Mistérios de Lisboa [Raúl Ruiz, 2010]. Comecei aí a procurar alguém que pudesse trabalhar e transformar a minha ideia.”
Que ideia era essa? Pois bem, antes do mais, uma aposta em revisitar um tempo específico, pré-25 de Abril: “São situações a que eu próprio assisti, antes e depois da Revolução, sem esquecer que fui para França em 1971. O que me fascinou foi a possibilidade de fazer um retrato da vida nos latifúndios em Portugal, retrato que estava em grande parte por esboçar, mesmo tendo em conta que José Cardoso Pires já tinha abordado esse universo no romance O Delfim [1968]. Vivia-se um tempo fora da realidade, que era também um tempo fora dos padrões europeus. Foi, aliás, por isso, que parti: senti que aquele era um mundo que, inevitavelmente, iria acabar.”
São memórias, afinal, de alguém que experimentou as contradições desse mundo de modo ambivalente: ”Vivi, ainda adolescente, depois jovem adulto, sem pertencer directamente a tal mundo, mas conhecendo-o através de amizades familiares. Digamos que eu era um deles sem ser um deles… Tinha um olhar com um distanciamento que, em princípio, quem pertencia a esse mundo não teria.”
“Como se costumava dizer, havia a sensação de que vivíamos fora daquilo que se passava para lá dos Pirinéus”, recorda Paulo Branco, embora não aceitando que isso se esgote num retrato maniqueísta de si próprio e do país: “Não posso deixar de dizer que fui muito feliz naquele tempo, sendo certo que aquilo que acontecia me ia dando consciência de muitas outras coisas.” Feliz? Não é uma palavra que integre as visões políticas que tendem a demonizar tudo o que então vivemos: “Fui extremamente feliz. É um tempo de que guardo recordações únicas e também amizades únicas, que permanecem muito fortes — o que não impedia que desejasse descobrir outros horizontes.”
Havia também o perigo de ceder aos clichés de representação da própria vida num latifúndio: “Era importante evitar situações mais folclóricas como, por exemplo, a relação com os touros e, sobretudo, a faceta marialva de algumas personagens com que me cruzei nessa época.” Questão de produtor, sem dúvida: “Era importante que o filme tivesse uma dimensão universal.”
E aí surge a palavra chave: melodrama. Não no sentido pejorativo que o senso comum, muitas vezes, lhe atribui. Ou seja: falamos do género clássico em que reconhecemos uma intensidade “poderosa” a pontuar as convulsões, rupturas e reencontros das relações homens/mulheres: “O filme acompanha a transformação de um mundo quase feudal, passa pela Revolução e chega aos tempos do neo-liberalismo. Nessa evolução, gerou-se uma energia incrível que deu visibilidade a sentimentos e frustrações que existiam no interior das famílias, por vezes de forma destruidora, outras verdadeiramente libertadora. Aconteceu com filhos, pais, mães, amantes… É daí que vem o melodrama.”

[continua]