domingo, setembro 29, 2019

Comédia argentina, jogo de espelhos

Graciela Borges
Conhecido por O Segredo dos seus Olhos, um filme “oscarizado”, Juan José Campanella regressa com O Conto das Doninhas, uma comédia de elaboradas surpresas; no papel central está uma grande dama do cinema da Argentina: Graciela Borges — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Setembro).

Que bom que é encontrar uma comédia que não depende de esclerosadas anedotas sexuais com adolescentes, não confundindo a “velocidade” da acção com o verdadeiro humor... O Conto das Doninhas é essa comédia, acima de tudo relembrando-nos que podemos (e devemos) estar atentos às propostas de cinematografias que não têm lugar garantido na linha da frente do mercado.
Estamos perante uma produção da Argentina, aliás assinada por um dos seus cineastas mais internacionais: Juan José Campanella, autor de O Segredo dos Seus Olhos, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro atribuído em 2010. Face a O Conto das Doninhas, o menos que se pode dizer é que Campanella continua a desenvolver o seu gosto por explorar modelos tradicionais de narrativa, “desviando-os” para lá das suas soluções mais conhecidas ou previsíveis.
Além do mais, O Conto das Doninhas vive do magnetismo de Graciela Borges, lendária veterana da produção cinematográfica da Argentina — conhecemo-la como protagonista de O Pântano (2001), de Lucrecia Martel (presidente do júri do recente Festival de Veneza) e reencontrámo-la, há poucas semanas, graças à estreia do também muito interessante Um Segredo de Família (2018), de Pablo Trapero.
A personagem de Graciela Borges é tanto mais sugestiva quanto instala um perverso jogo de espelhos com a sua própria imagem de marca. Ela interpreta Mara Ordaz, velha glória do cinema, precisamente, que se descobre envolvida numa bizarra teia afectiva e... financeira. Dito de outro modo: um casal de radiante simpatia quer comprar o seu palacete com objectivos que talvez sejam menos transparentes do que aparentam.
Com Mara vivem o seu marido e dois homens, um realizador e um argumentista, indissociavelmente ligados às glorias da sua carreira (o realizador dedica-se, em particular, a caçar a tiro as doninhas que circulam pelos terrenos da propriedade de Mara). A pouco e pouco, vamos compreendendo que esta insólita comunidade se organiza, afinal, como... um filme: das pinturas não muito sofisticadas do marido às misteriosas bebidas que os outros homens gostam de preparar, tudo depende de um jogo festivo de aparências, gerando momentos de desconcertante vocação espectacular.
Campanella aplica a arte ancestral da ambivalência da comédia, apoiando-se de forma decisiva nas nuances dos diálogos e, com hábil contenção, em calculados efeitos de surpresa. De tal modo que O Conto das Doninhas consegue deslizar da simples caricatura para as atribulações de um humor realmente muito negro. A lembrar, afinal, que a comédia se fundamenta no paciente estudo das contradições do género humano, com ternura pelas suas personagens, sem esquecer o tempero de uma pitada de crueldade.