Sandra Faleiro + Albano Jerónimo |
Contrariando qualquer visão esquemática da nossa história, Tiago Guedes propõe, em A Herdade, uma abordagem subtil de várias décadas portuguesas, pré e pós-25 de Abril, com especial cuidado no trabalho dos actores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Setembro).
Mais do que nunca, creio que importa resistir ao maniqueísmo vingativo que insiste em pensar (?) o cinema português como um combate de galos entre filmes “populares” e filmes “intelectuais”. Salvo melhor opinião, tal visão apenas tem gerado conflitos ideológicos cada vez mais vazios, em boa verdade alimentando uma dramática inércia das políticas culturais para o cinema.
Há questões conceptuais e narrativas incomparavelmente mais estimulantes. Uma delas começa no reconhecimento de que muitos filmes portugueses, “melhores” ou “piores” (não é isso que está em causa), mostram sérias dificuldades para lidar com as convulsões da própria história do seu/nosso país. Não poucas vezes, as memórias colectivas (p. ex.: em torno do 25 de Abril) são tratadas através de símbolos simplistas que apenas alimentam um militante vazio de pensamento sobre o que somos — e, sobretudo, como somos.
Isto para dizer que A Herdade, de Tiago Guedes, é um filme que aceita e, mais do que isso, arrisca lidar com a nossa história recente — algumas décadas antes e depois de 1974 —, contrariando lugares-comuns narrativos, esquematismos estéticos e preconceitos morais. Dito de outro modo: esta é a saga de um latifundiário, João Fernandes, exemplarmente composto por Albano Jerónimo num misto de contenção e fúria, que atravessa várias convulsões de Portugal ao longo do século XX, descobrindo (e nós com ele) as feridas afectivas do seu território familiar e, mais do que isso, a vulnerabilidade do tecido económico em que está inserido.
De alguma maneira reforçando o gosto realista que já marcava o seu Entre os Dedos (2008), o trabalho de Tiago Guedes possui, assim, o fôlego de uma aventura de muitas emoções que, subtilmente, sabe ir deslizando para uma genuína respiração melodramática. Entenda-se: o melodrama nada tem a ver com a formatação telenovelesca que se tornou uma poderosa e devastadora matriz cultural; é antes uma delicada arte de lidar com as forças mais secretas do comportamento humano e também, importa não esquecer, um dos mais genuínos e antigos géneros da produção cinematográfica europeia e americana (de Luchino Visconti a Vincente Minnelli).
Um dos aspectos fulcrais dessa energia melodramática envolve o tratamento das relações homens/mulheres e, em particular, os caminhos de resistência do imaginário feminino à força normativa do poder masculino. Nada a ver, entenda-se também, com o moralista simplista tantas vezes inadvertidamente favorecido pelas mais legítimas e bem intencionadas formas de militância social. Antes a delicada exposição de um modo feminino de ser e estar que, em A Herdade, encontra a sua expressão mais depurada na densidade emocional da personagem de Leonor, mulher do latifundiário. A sua interpretação, a cargo da brilhante Sandra Faleiro, é um invulgar e fascinante evento cinematográfico — e tanto mais quanto, no seu confronto desigual com o imaginário televisivo, o cinema português há muito perdeu a faculdade de gerar uma galeria de nomes e rostos realmente ligados ao grande ecrã.