quarta-feira, agosto 14, 2019

A utopia de Abbey Road

A célebre fotografia dos Beatles a atravessarem uma passadeira da Abbey Road, em Londres, foi registada há meio século: as memórias da imagem e da música continuam a ser vividas como um acontecimento do nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Agosto).

Foi a 8 de Agosto de 1969 que o fotógrafo escocês Iain Macmillan (1938-2006) registou uma das imagens mais célebres da história da música popular do século XX: nela vemos George Harrison, Paul McCartney, Ringo Starr e John Lennon a atravessarem uma passadeira da Abbey Road, em Londres. A 26 de Setembro do mesmo ano, a fotografia surgiria nas lojas de discos como capa do penúltimo álbum de estúdio dos Beatles: Abbey Road, precisamente.
Iain Macmillan
Na quinta-feira, a imprensa de todo o mundo deu conta do 50º aniversário da imagem e, em particular, das celebrações in loco. Algumas centenas de pessoas (segundo a Time), porventura alguns milhares (garantia a BBC), estiveram no local, junto dos estúdios em que Abbey Road foi gravado, para evocar tão emblemática imagem, fazer as suas próprias fotografias e até, no caso de um “sósia” de McCartney, propor casamento à namorada...
O evento envolve um curioso sintoma do modo como passámos a viver muitas celebrações colectivas e, em particular, as efemérides. Não se trata, de modo algum, de reduzir os protagonistas anónimos a qualquer caricatura. Aliás, consigo imaginar-me, sem relutância, a fazer a mesma peregrinação a tão mítico lugar.
Mas vale a pena registar a contradição: o festivo “regresso” à capa de Abbey Road não envolveu quaisquer impulsos “sociais” (decididamente, as “redes” são preguiçosas...) no sentido de uma metódica e apaixonada revisitação dos 17 títulos do álbum. E não faltariam motivações para o fazer: começando no prodigioso Come Together (que durante algum tempo não passou na rádio da BBC, já que a sua referência à Coca-Cola contrariava as regras internas no sentido de não difundir canções que contivessem alusões a produtos comerciais) e terminando no delicioso e minimalista Her Majesty (em que Paul refere a Rainha como “a pretty nice girl” [audio]). Sem esquecer Something e Here Comes the Sun, duas obras-primas assinadas por Harrison, quase sempre o mais “ausente” dos quatro.


Não estamos perante um fenómeno isolado que se possa “explicar” pelas peculiaridades de alguns fãs dos Beatles. Para compreendermos a sua lógica (ou a falta dela), podemos, e devemos, superar a ditadura simbólica que decorre do actual tribalismo mediático: segundo o grosseirismo de tal conceito, qualquer relação com um determinado evento — musical, cinematográfico, futebolístico, etc. — só poderia existir se enquadrada pela “razão” compulsiva de uma multidão mais ou menos ululante.
De um ponto de vista geracional (da minha geração, entenda-se), vale a pena lembrar que o aparecimento de Abbey Road foi vivido numa encruzilhada de fascínio, perplexidade e, se é que consigo aplicar a palavra num sentido visceralmente cultural, angústia.
Desde logo, porque estávamos perante um objecto de vertiginosa criatividade, porventura ainda mais radical que o “Álbum Branco” (publicado dez meses antes), oscilando da candura pop até às mais enigmáticas ousadias experimentais; depois, porque o seu lançamento foi enquadrado pelas notícias de uma ruptura iminente dos quatro de Liverpool; enfim, porque essa ruptura aconteceu mesmo passado pouco tempo, de tal modo que o álbum final, Let It Be, editado em Maio de 1970, foi já escutado como um ritual de despedida (ironicamente, a maior parte do seu material tinha sido registada antes das sessões de Abbey Road).
A herança dos Beatles não pode ser dissociada dessa sensação, de um só vez racional e anímica, que faz com que a música exista como uma aventura da própria identidade de quem a escuta. Não é, evidentemente, um exclusivo de qualquer passado (musical ou não). É mesmo um misto de energia e mistério que as décadas vão reforçando e que, em última análise, não necessita da caução de qualquer efeméride.
Talvez encontremos aí os restos de um impulso utópico que, mesmo quando se exprime através do ruído mediático, não se esgota na nostalgia. A saber: tudo é presente, a nossa casa fica numa esquina de Abbey Road.

ABBEY ROAD STUDIOS