terça-feira, julho 23, 2019

O helicóptero de Donald Trump

Quando vemos Donald Trump a falar aos jornalistas nos jardins da Casa Branca, nem sempre é fácil ouvir o que ele diz. Porquê? Porque lá ao fundo está um helicóptero a rugir — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Julho), com o título 'Porque grita Trump'.

A imagem possui um valor icónico. No sentido figurativo que António Houaiss estabelece no seu dicionário: “pessoa ou coisa emblemática do seu tempo, do seu grupo, de um modo de agir ou pensar, etc.”
Creio que esse valor começa num básico efeito de reconhecimento. Aí está o contorno do corpo de Donald Trump, a coloração do seu cabelo e o gesto de desenhar um arco com as mãos, reiterando algo que considera evidente. Tudo isso pressupõe a ocupação de um lugar concreto, os jardins da Casa Branca, em que as figuras dos seguranças e os microfones dos jornalistas são elementos correntes da cenografia da informação presidencial.
Trata-se, curiosamente, de uma imagem oficial: um fotograma — ou “frame”, para aplicarmos a terminologia que o digital impôs — retirado de um vídeo da Casa Branca (repare-se no emblema colocado no topo direito com o endereço abreviado: WH.GOV). O certo é que tão cândida descrição está longe de ser suficiente para compreendermos o funcionamento da imagem e do fluxo de imagens em que está integrada.


Falta-nos algo que quase sempre esquecemos quando proclamamos esse lugar-comum, tão cómodo e tão preguiçoso, segundo o qual “vivemos num mundo de imagens”. Falta o som do ambiente em que a imagem foi gerada. Dito de outro modo: precisamos de olhar para o fundo e sublinhar a presença do Marine One, o helicóptero presidencial. No vídeo, o ruído do helicóptero domina a cena, levando Trump a gritar para que as suas palavras possam ser ouvidas.
Como espectador interessado na quotidiana convivência de políticos e televisões, ou melhor, nas narrativas geradas através dessa convivência, fui-me apercebendo desse dado insólito: na Casa Branca, a esmagadora maioria das declarações de Trump aos jornalistas passou a ser feita antes das suas saídas em helicóptero, com o Presidente dos EUA a “integrar” o ruído no seu espaço comunicacional.
Em boa verdade, a situação já tinha sido considerada por alguma informação americana. Assim, em Março do corrente ano, o jornal The Washington Post publicou um pequeno vídeo (um minuto e meio) em que inventariava as suas variações dramáticas. É fascinante, com o seu quê de assustador, observar como Trump, consciente das dificuldades de comunicação originadas pelo ruído do helicóptero, promove esse ruído a contraponto do seu discurso. Quando um jornalista lhe coloca uma questão que ele próprio não terá entendido, diz: “Você está a competir com o helicóptero...” Ou dá conta das suas dificuldades de audição: “Peço desculpa, mas tenho um helicóptero a rugir ali ao fundo...” Ou ainda: “Não consigo ouvi-lo, tenho ali um helicóptero...”


Ainda em 2018, numa edição de Dezembro do programa The David Pakman Show (disponível em televisão, rádio e Internet), o próprio Pakman tinha perguntado se faria sentido acusar Trump de organizar este tipo de situações para evitar enfrentar as perguntas mais difíceis dos jornalistas. Com louvável prudência, Pakman evitava cair nesse género de especulação “policial”, chamando antes a atenção para o essencial: na prática, aquela conjuntura “informativa” favorece a fuga sistemática de Trump a qualquer diálogo sério.


Falta recordar o mais perturbante, eventualmente o mais incómodo. A saber: a possibilidade de os próprios jornalistas recusarem “dialogar” naquele aparato ruidoso em que, objectivamente, apenas é possível registar um ou outro “soundbyte”.
Será tal possibilidade uma via pertinente para afirmar a identidade do jornalismo? Não tenho qualquer certeza sobre isso, mas é um facto que os “soundbytes” assim obtidos são regularmente lançados (e reproduzidos ad infinitum) nos circuitos internacionais de televisão. Sobra, por isso, uma interrogação cruel: de que modo o exercício do poder político passou a conter muitos elementos induzidos, sustentados e, por vezes, inconscientemente potenciados pelos dispositivos “naturais” da televisão?