terça-feira, julho 16, 2019

CURTAS 2019
— seis filmes a reter


Eis um pequeno balanço de alguns dos filmes mais interessantes vistos na 27ª edição do CURTAS Vila do Conde — estas notas integravam um texto de balanço do festival, publicado no Diário de Notícias (14 Julho).

De uma visão (incompleta) da selecção apresentada pela 27ª edição do CURTAS fica uma ideia de encruzilhada. Tal como nas longas-metragens, os “pequenos formatos” andam também à procura de novos modelos narrativos, ao mesmo tempo integrando os recursos tecnológicos que, melhor ou pior, fazem parte da vertigem virtual em que vivemos. E isto em todos os domínios, da ficção com actores aos desenhos animados, passando pelos registos documentais.
Eis uma breve galeria de seis títulos (dos mais interessantes que vi em Vila do Conde) que podem ajudar a resumir tal conjuntura:


PLEASE SPEAK CONTINUOUSLY AND DESCRIBE YOUR EXPERIENCES AS THEY COME TO YOU – Novíssima proposta de Brandon Cronenberg (filho de David Cronenberg), encenando em 9 intensos minutos a experiência de uma jovem internada numa clínica como cobaia para experiências com um revolucionário implante cerebral... O longo título faz parte do pedido que é feito à paciente (descrever espontaneamente o que vai “vendo” no seu cérebro) e serve de mote a uma fábula sobre a perda de identidade em nome do avanço tecnológico — é um prolongamento coerente e envolvente de Antiviral (2012), longa-metragem de estreia do cineasta.

THE SIX – Enigmática e belíssima animação chinesa, realizada por Xu An e Xi Chen. Num espaço a preto e branco que mais parece uma ilustração de um livro que ganha vida, assistimos às seis “acções” que o título promete, acompanhando os gestos de aproximação amorosa de um homem a uma mulher, enquadrados por duas luas em permanente transfiguração luminosa. O resultado tem qualquer coisa encantatório, devolvendo ao cinema um gosto ilusionista, de pura e descomplexada contemplação.

A STORY FROM AFRICA – Como revisitar as memórias coloniais (neste caso, de Portugal) sem ceder aos lugares-comuns históricos ou ideológicos que se foram consolidando no imaginário colectivo? O cineasta americano Billy Woodberry propõe um admirável trabalho de inventariação e decifração de fotografias de uma “campanha de pacificação” levada a cabo pelo exército português, em 1907, em Angola, no território do povo Cuamato. Construído a partir de imagens arquivadas na Fundação Mário Soares, este é um exemplo invulgar, ao mesmo tempo histórico e pedagógico, de revisitação das memórias do colonialismo português.


LES EXTRAORDINAIRES MÉSAVENTURES DE LA JEUNE FILLE DE PIERRE – Uma estátua de pedra do Louvre sai todos os dias dos seu pedestal para “conviver” com outras obras do museu, acabando por arriscar sair para a rua e sofrendo as consequências da sua ousadia... Com assinatura de Gabriel Abrantes, eis um exemplo feliz de como é possível elaborar uma fábula “à moda antiga”, genuína e contagiante, ao mesmo tempo aplicando os mais modernos efeitos especiais. O realizador parece ter superado os equívocos “simbólicos” do seu trabalho anterior (em especial a longa-metragem Diamantino), optando por um cinema que celebra o seu artifício sem nunca alienar o gosto de contar histórias, interessando-se, realmente, pela humanidade das personagens. Surpreendentemente ou não, uma dessas personagens é uma estatueta egípcia do tempo dos faraós ou, mais exactamente, um simpático hipopótamo de nome Jean-Jacques...

IN BETWEEN – São apenas 14 minutos, mas possuem o fôlego de uma história de muitas gerações: num tom de austero documentarismo, Samir Karahoda regista as histórias de várias gerações da população rural do Kosovo e, em particular, o modo como os pais se assumem como construtores de habitações para os filhos. Através desse mecanismo de herança assistimos, afinal, à renovação de um espírito comunitário alicerçado num sistema ancestral de valores.

DEMONIC – Com assinatura da australiana Pia Borg, eis um objecto tão estranho quanto fascinante. Em primeiro lugar, trata-se de recordar alguns casos de alegações de abuso através de rituais satânicos surgidos nos EUA ao longo da década de 80, recordando também o enorme aparato informativo que suscitaram, quase sempre de carácter especulativo e sensacionalista. Ao mesmo tempo, o filme aborda esses casos através de “reconstruções” com actores, e também recorrendo a cenas de animação a três dimensões, num jogo dialético sobre o modo como um sociedade vive (por vezes delirando) as manifestações do mal no seu interior. É um caso exemplar de um cinema que discute a nossa relação com a verdade e, em particular, o modo como essa relação surge marcado pelo trabalho específico dos media.