quarta-feira, junho 26, 2019

Ser ou não ser Pavarotti

Depois dos Beatles, o cineasta americano Ron Howard volta a interessar-se por uma figura lendária da música: o seu retrato do tenor italiano Luciano Pavarotti cruza os sucessos internacionais com as singularidades do espaço familiar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Junho).

A 12 de Setembro de 1995, Luciano Pavarotti (1935-2007) promoveu um concerto de beneficência (da série “Pavarotti & Friends”), na sua cidade natal, Modena. Objectivo central: a angariação de fundos para as crianças da Bósnia, vítimas da guerra (recorde-se que os acordos de paz só seriam assinados cerca de três meses mais tarde). Acontecimento central nesse evento foi a canção Miss Sarajevo, interpretada pelo tenor italiano na companhia de dois elementos dos U2, Bono e The Edge, e ainda o produtor Brian Eno.


A canção transformou-se num verdadeiro fenómeno global, além do mais ilustrando a capacidade de Pavarotti cruzar a arte da ópera com as componentes do pop rock. O certo é que a sua gestação não foi fácil, com Bono a receber sucessivos telefonemas de “intimação” de Pavarotti, “exigindo-lhe” que compusesse algo que pudessem cantar juntos... Mais do que isso, através desses telefonemas, Pavarotti foi estabelecendo uma relação de cumplicidade com a governanta de Bono (também de origem italiana), a ponto de conseguir que ela o fosse pressionando no dia a dia no sentido de não se esquecer da canção que tinha “prometido” ao Signore Pavarotti...
A história está contada pelo próprio Bono no documentário de Ron Howard, intitulado apenas Pavarotti, um exemplo feliz do modo como o cinema pode ser um instrumento de (re)descoberta de uma figura universalmente conhecida e celebrada. Claro que revisitamos o espectacular sucesso dos “Três Tenores” (Pavarotti com os seus amigos Plácico Domingo e José Carreras), mas tão só como um capítulo de uma trajectória pessoal e artística que está longe de se reduzir às imagens mais fortes do marketing.


Dir-se-ia que Howard relança, aqui, a estratégia que já dera origem ao magnífico The Beatles: Eight Days a Week (2016), dedicado às performances ao vivo dos quatro de Liverpool e, em particular, ao seu impacto nos EUA. Os muitos e fascinantes materiais de arquivo, incluindo documentos da mais pura intimidade familiar, não são acumulados como meras “curiosidades” biográficas. Em boa verdade, trata-se de perguntar qual a identidade de alguém consagrado em palcos de todo o mundo, ao mesmo tempo vivendo uma existência em que o rigor obsessivo da preparação se cruzou sempre com as convulsões do amor e da paixão. Sem esquecer o pormenor do amuleto (um prego dobrado) que sempre acompanhou Pavarotti...
Assim se confirma também que passou a haver uma multifacetada área documental que, felizmente, conquistou um lugar seguro nas dinâmicas do mercado cinematográfico: Pavarotti é um filme, afinal, sobre alguém que, através do canto, nunca desistiu de enfrentar os enigmas do seu próprio ser.