sexta-feira, junho 21, 2019

Onde estão os espectadores de cinema?

Vasco Santana e Beatriz Costa
A CANÇÃO DE LISBOA (1933)
Os números oficiais do mercado cinematográfico apontam para uma realidade dramática: a base tradicional de espectadores está em decomposição. Neste contexto, o cinema português é uma parte importante, mas que não pode ser desligada do todo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Junho).

Segundo os números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, no primeiro fim de semana de exibição (6/9 Junho), o filme X-Men: Fénix Negra foi visto por 32.714 espectadores. No mesmo período, Foxtrot, de Samuel Maoz, estreado na mesma data, atraiu 307 espectadores.
Panorama contraditório: um “blockbuster” rotineiro face a Foxtrot, retrato das nuances da identidade israelita que me parece um dos três ou quatro melhores filmes este ano lançados entre nós. Mas não se trata, aqui, de especular sobre o “gosto” (questão cuja complexidade educacional e política não cabe nestas linhas). Acontece que, na sociedade portuguesa, se instalou a noção pueril segundo a qual as estatísticas nos dão a conhecer as “opções” de fundo dos espectadores de cinema.
Vale a pena um simples exercício aritmético. Assim, X-Men esteve em 78 ecrãs, num total de 1230 sessões — quer isto dizer que conseguiu uma média de 26 espectadores por sessão. Foxtrot estreou-se numa única sala e teve 12 sessões — resultado: 25 espectadores por sessão. Conclusão linear: em termos proporcionais, os dois filmes tiveram um comportamento comercial idêntico.
Os mais poderosos discursos económicos reduzem a cultura cinematográfica à identificação das “escolhas” dos espectadores: onde os números forem mais elevados, aí está o “segredo” do mercado! Seria curioso exibir X-Men num único ecrã e lançar Foxtrot em 78 salas... E depois refazer as contas.
Ironizo, sim, ma non troppo. Resisto a números deslocados de qualquer contexto, ignorando a história cultural e comercial (é a mesma coisa) do cinema em Portugal. Partamos de uma evidência crua: para o desejável bom funcionamento do mercado cinematográfico, os números de X-Men e Foxtrot são fraquíssimos.
Resisto também a qualquer reflexão que pretenda encontrar soluções parcelares. Que soluções? Por exemplo, procurando a “recuperação” de espectadores para os filmes portugueses. Não discuto a boa fé de quem procura tais soluções, mas duvido da respectiva pertinência. A nossa incapacidade para, pelo menos, identificar o que está em jogo tem antecedentes muito antigos, a começar pela ilusão de que houve um período paradisíaco de sucesso do cinema português, marcado pelas “tradicionais” comédias com Vasco Santana, Beatriz Costa e António Silva.
Num livro intitulado O Cinema Português Nunca Existiu (ed. CTT), João Bénard da Costa escalpelizou tal equívoco, recordando que a chamada “idade de ouro” do cinema português (1931-54), “quando os filmes portugueses seriam a árvore das patacas”, não passa de um logro. “Nada mais falso”, escreve ele, analisando em particular a falência das Produções Lopes Ribeiro, lançadas com O Pai Tirano (1941). O livro foi editado em 1996, Bénard da Costa é por todos reconhecido como um pensador nuclear na história do cinema em Portugal, mas a simples inventariação de dados objectivos continua a ser substituída por um utopismo fácil, sem pensamento.
Aos números citados, podemos contrapor exemplos pontuais de performances comerciais de excepção (incluindo de algumas produções portuguesas). Mas nada disso nos garante uma resposta operativa à angústia central: onde estão, para onde vão, os espectadores de cinema?
O frágil mercado português vive, e vive mal, através dos modelos dominantes do comércio americano (o que, entenda-se, não exclui a celebração da excelência de muitas zonas do cinema dos EUA). Um sintoma drástico de tal processo é o desmantelamento da rede de salas tradicionais e o triunfo de uma cultura de multiplexes em que a relação de cada espectador com cada filme já (quase) nada tem a ver com qualquer valor cinéfilo.
Resta saber se, na nossa minúscula escala, podemos e sabemos sobreviver enredados no risco de implosão em que Hollywood passou a existir, promovendo os “blockbusters” a matriz compulsiva de produção, promoção e difusão. E quando escrevo a palavra “implosão” não a utilizo em função de qualquer especificidade crítica. A possibilidade de, a prazo, Hollywood entrar num processo de decomposição estrutural foi tema de uma conversa promovida pela Escola de Cinema da Universidade da Califórnia, já lá vão seis anos (12 de Junho de 2013). Não creio que a actual conjuntura internacional desminta essa possibilidade. Em qualquer caso, registe-se que quem lançou o alerta se chama Steven Spielberg.