sábado, fevereiro 23, 2019

Que futuro para a cinefilia?

O cinema passou a existir entre a tradição das salas escuras e o desenvolvimento exponencial de plataformas de “streaming” como a Netflix: resta saber que novos espectadores estão a nascer através da nova idade das imagens e dos sons — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'O cinema do futuro passa pela Netflix... mas não só'.

Lembram-se de Apollo 13, o filme de 1995, com Tom Hanks, que evoca a dramática missão lunar que não chegou ao seu destino? Alguns meses depois da sua estreia, Reed Hastings, um matemático, então gestor da empresa de informática Pure Software, alugou uma cópia VHS do filme numa loja Blockbuster da cidade de Santa Cruz, na Califórnia. Acontece que excedeu o prazo do aluguer — o seu atraso traduziu-se numa multa de 40 dólares (cerca de 35 euros à cotação actual).
A veracidade desta história tem sido muito disputada; há até quem sugira que foi o próprio Hastings que a inventou como recurso estratégico de argumentação. Qual é, então, a moral da história? Pois bem, estavam criadas as condições para conceber um modelo de negócio que permitisse aos consumidores ver os filmes em suas casas sem estarem dependentes de idas regulares a um clube de vídeo.
O VHS vivia o derradeiro capítulo do seu período de glória, surgindo o DVD no mercado dos EUA a 31 de Março de 1997; poucos meses mais tarde, a 29 de Agosto, Hastings e o seu amigo Marc Randolph, empresário na área do marketing, fundavam a Netflix. Com que objectivo? Venda e aluguer de DVD pelo correio.
A empresa foi-se transfigurando: em 1998, era já um site de aluguer de filmes; em 2007, inaugurou um serviço de streaming na Internet; em 2010, começou a expandir-se para além dos EUA, chegando ao Canadá; em 2013, iniciou a difusão do primeiro conteúdo de produção própria (a série House of Cards). Em 2019, não é possível especular sobre o futuro do cinema sem convocar a Netflix.
Acessível em quase todos os países do mundo (China, Coreia do Norte e Irão são algumas das excepções), a Netflix está à beira de chegar aos 140 milhões de assinantes, produzindo anualmente mais de uma centena de filmes e séries. Neste momento, a sua bandeira universal é o filme Roma, de Alfonso Cuarón, um verdadeiro “papa-prémios”, dos Globos de Ouro de Hollywood aos BAFTA britânicos, perfilando-se como um dos principais favoritos na 91ª edição dos Oscars (24 de Fevereiro).
Há outra maneira de dizer tudo isto: para o melhor e para o pior, o modelo dominante do consumidor de cinema, que foi o modelo do século XX, mudou de forma drástica ao longo das primeiras duas décadas do século XXI. Para o melhor, porque, de facto, a acessibilidade dos filmes — do mais remoto clássico de Marlene Dietrich aos títulos de culto do cinema independente, passando pelas obras-primas de Charles Chaplin ou Ingmar Bergman — aumentou de modo exponencial; para o pior, porque estamos a assistir à metódica decomposição de uma cultura cinéfila que, ao longo de um século, celebrou a sala escura como lugar sagrado de descoberta e contemplação dos filmes.
Na mais pessimista avaliação deste estado de coisas, podemos mesmo considerar que há muitos espectadores das gerações mais jovens que estão a ser sujeitos a um processo de agressiva (des)educação. No limite mais cruel, tornaram-se indiferentes à verdade primordial do espectáculo: é um facto que podem ter Lawrence da Arábia (1962) ou 2001: Odisseia no Espaço (1968) a passar no sedutor ecrã do seu telemóvel, mas movem-se num sistema de consumo que tende a apagar os prazeres primitivos da memória. Como se andássemos a coleccionar cromos das obras-primas de Rembrandt, ignorando que aquelas pinturas existem com diferentes dimensões e uma outra verdade material...
Perturbante encruzilhada. Mesmo com o seu gigantismo e poder de difusão, a Netflix é apenas um dos elementos a considerar face à complexidade do que está em jogo. Desde logo, porque as plataformas de “streaming” constituem o palco primordial de algumas das mais aguerridas lutas económicas (entenda-se: de poder audiovisual) que, de uma maneira ou de outra, irão condicionar o cinema do futuro.
O caso dos estúdios Disney é revelador. O império do Rato Mickey, em tudo e por tudo associado à história e à mitologia das tradicionais salas de cinema, irá lançar no mês de Setembro, nos EUA, o seu próprio serviço de “streaming” (com a designação Disney+). Para além do património imenso dos seus filmes, a Disney contará com os produtos das suas aquisições dos últimos anos, dos estúdios de animação Pixar à 20th Century Fox, passando pela Marvel Entertainment e a Lucasfilm (ex-George Lucas, berço criativo da saga Star Wars).
E somos tentados a recuperar um velho simbolismo: será que estes confrontos entre entidades tão poderosas estão a colocar em causa a sobrevivência do “cinema de autor”?
Enfim, abrimos uma caixinha de Pandora quando formulamos tal questão. É verdade que a história nos ensina que sempre existiu um contraste mais ou menos óbvio entre os produtos anónimos, que se limitam a aplicar fórmulas estereotipadas de narrativa, e os filmes que nascem de inconfundíveis visões pessoais do mundo (e, claro, do próprio cinema).
Mas não é menos verdade que nada justifica que associemos o mais aguerrido poder económico ao esvaziamento de tais visões. Exemplo? Roma, esse diamante cinematográfico com que a Netflix, com toda a legitimidade, está a tentar arrebatar o seu primeiro Oscar. Haverá filme mais pessoal e intimista? Para mais, a preto e branco...
Todas estas convulsões questionam, implicitamente, um domínio que, quase sempre, se tem mantido ausente (ou se ausentou) de tão urgentes reflexões. Ou seja: as chamadas televisões generalistas.
Não se trata, entenda-se, de relançar a tradicional questão em torno da “qualidade” dos produtos que tais televisões geram ou difundem. Trata-se, isso sim, de compreender que o modelo clássico do espectador de televisão também foi desaparecendo do espectro do consumo. Tal como o “streaming” modificou os hábitos dos espectadores de filmes, também as matrizes de programação ligadas a horários estáveis (com programas “típicos” em cada momento do dia ou da noite) estão condenadas a desaparecer.
Nesta perspectiva, importa reconhecer que “cinema” e “televisão” estão a atravessar um processo de crescente contaminação pelos circuitos da Internet. O protagonismo de entidades como a Netflix é um inequívoco sintoma de tal processo, ao mesmo tempo reforçando a importância — cultural, económica e simbólica — de defesa do universo clássico das salas.
Do ponto de vista político, abre-se uma paisagem de questões e perplexidades que não pode ser enfrentada apenas através das funções de regulação que, tradicionalmente, as entidades políticas se atribuem. Regular o quê? As licenças dos operadores? O equilíbrio das respectivas oportunidades? A circulação dos conteúdos?
Sim, sem dúvida. E há muito por esclarecer nesse campo, sendo o Estado, idealmente, um árbitro tanto quanto possível equidistante de todos os protagonistas. Mas seria uma ingenuidade, de uma só vez política e cultural, pensar que nas nossas sociedades democráticas se pode lidar com tudo isso sem repensar de alto a baixo a educação dos jovens (e dos adultos, por certo) para a nova idade das imagens e sons em que já entrámos. O que distingue um bom de um mau espectador nada tem a ver com o ser ou não ser assinante da Netflix: é a capacidade de sentir e pensar para além das rotinas do próprio consumo.