Viola Davis e Liam Neeson |
Steve McQueen continua a ser um dos mais inventivos cineastas da actualidade: com o filme Viúvas, ele transforma uma estrutura de “thriller” numa tragédia sobre os enigmas dos laços humanos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Novembro).
O novo filme do inglês Steve McQueen, Viúvas, celebra o poder no feminino. E em tom vibrante de “thriller”. Esta é a história de um grupo de mulheres que recebem uma sinistra “herança”: são intimadas a pagar uma dívida contraída pelos maridos na sequência de um roubo especialmente atribulado... Com esse detalhe que é tudo menos indiferente: o golpe correu mal e, durante a fuga, os homens morreram numa aparatosa explosão...
Digamos que um resumo como este envolve vários equívocos. Desde logo, porque podemos supor que se trata apenas de prolongar uma história clássica de polícias e ladrões, “substituindo” os homens pelas mulheres — nada disso, este é não um produto da demagogia “feminista” que encontrámos, por exemplo, em Ocean’s 8 (duplicando de modo pueril os mecanismos da série que começou com Ocean’s 11).
Convém acrescentar que também não estamos perante uma banal intriga de “vingança” — aquilo que McQueen filma é, afinal, a força perversa que, para a vida ou para a morte, determina a acção das viúvas a que o título se refere. Que força? Pois bem, o dinheiro. Ou melhor: a circulação do dinheiro.
Dir-se-ia que McQueen (49 anos, nascido em Londres) não tem feito outra coisa na sua carreira cinematográfica (ele que vem do domínio da chamada vídeo-arte). A saber: encenar personagens confrontadas com “coisas” que circulam, determinando a existência de tudo e todos. Em Fome (2008), era a comida que, em 1981, numa prisão na Irlanda do Norte, o activista do IRA Bobby Sands se recusava a ingerir; em Vergonha (2011), a compulsão sexual da personagem de Michael Fassbender parecia funcionar como metódica destruição do prazer; enfim, em 12 Anos Escravo (2013), o poder sobre os escravos e o seu desejo de liberdade enredavam-se numa tragédia de infinita crueldade.
Inspirado numa série televisiva de 1983-85, escrita por Lynda La Plante, Viúvas impõe-se como um exercício trágico de prospecção dos enigmas dos laços humanos. Nessa medida, através das regras do “thriller”, somos levados a descobrir a complexidade de um universo feminino em permanente ziguezague com o masculino.
No limite, trata-se de saber se as marcas do dinheiro nas relações humanas não anularam todas as formas de cumplicidade e compaixão. Sem esquecer que tais marcas se manifestam nas trocas mais íntimas, mas também nos espaços da religião e da política (em pano de fundo, encontramos uma intriga sobre a gestão política da cidade de Chicago).
Para além da sábia composição dos espaços e gestão dos tempos, instalando um genuíno “suspense” existencial, tudo acontece através do labor de um brilhantíssimo elenco que inclui Viola Davis, Michelle Rodriguez, Elizabeth Debicki e Liam Neeson, este finalmente a representar para além do modelo “Taken” em que se especializou. Isto sem esquecer que McQueen convidou Gillian Flynn (autora de Em Parte Incerta, o romance que David Fincher adaptou em 2014) para trabalhar consigo no argumento: as subtilezas da respectiva construção são de tal modo elaboradas que, para além de desafiarem a moral do próprio espectador, justificam, no mínimo, uma nomeação para os Oscars. Veremos se as coisas circulam nesse sentido...