sábado, julho 28, 2018

Na solidão de T. E. Lawrence (2/2)

Memórias de Lawrence da Arábia, da imensidão do deserto aos caminhos mais secretos da solidão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Julho), com o título 'O deserto é uma coisa interior'.

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Cada grão de areia do deserto de Lawrence da Arábia não é um pixel que um génio imberbe de Silicon Valley tenha associado a outro pixel, a outro e mais outro... revendo-se na performance impessoal dos seus maravilhosos gigabytes. Década após década, o filme preserva, porventura ampliando, uma visceral verdade física. Daí que o deserto não seja um cenário de fundo, muito menos uma decoração pitoresca para enquadrar as atribulações dos incautos humanos. Podemos mesmo arriscar dizer que o deserto é uma presença íntima, coisa absolutamente interior na epopeia de Lawrence. Daí também a sensação insubstituível de que houve gente humana, porventura demasiado humana, que protagonizou e registou aquelas imagens desejadas e pensadas para os maiores ecrãs do mundo.
T. E. Lawrence
Essa intimidade, de uma só vez secreta e sensorial, não pode ser separada da sua origem literária: Lawrence da Arábia baseia-se no livro de T. E. Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria (cuja primeira edição tem data de 1922). Estamos perante um desses clássicos capaz de nos confrontar com as infinitas tensões entre as vivências individuais e as convulsões colectivas, ziguezagueando entre a sedução das abstracções políticas e o misto de pragmatismo e crueza que os gestos políticos tendem a reflectir.
Lawrence foi uma figura fundamental durante a Grande Guerra de 1914-18, emergindo como líder do envolvimento militar britânico com a revolta árabe contra a Turquia, aliada da Alemanha. A sua liderança trouxe-lhe uma dimensão simbólica de “arabização” de que as suas vestes do deserto constituem apenas os sinais mais óbvios: através da reconfiguração física e psicológica da sua identidade, Lawrence viveu um trágico processo de “ser ou não ser” que confere à sua epopeia um valor universal, profundamente actual.
Enredado nas contradições internas do mundo árabe, por vezes pontuadas por inusitadas formas de violência, mas também marcado pelas ambivalências hipócritas das directrizes políticas do seu próprio país (e da Europa, hélas!), Lawrence é um homem rasgado pela fúria labiríntica da história. Por um lado, os seus esforços para viver e vestir-se “como os árabes” conduziram-no ao distanciamento do seu “ser inglês”; por outro lado, a sua descoberta do(s) outro(s) envolveu um drama prático e filosófico cujo desespero ele condensa nas palavras de abertura do capítulo II do seu livro: “A primeira dificuldade do movimento árabe era dizer quem eram os árabes”.
Mais de meio século depois, o filme de David Lean continua a acompanhar-nos como um dedicado conselheiro existencial, não merecendo a acusação de Bosley Crowther, crítico do New York Times, que em Dezembro de 1962 o considerou “tão despido de humanidade como as areias secas do deserto que retrata”. No ano seguinte, em Cannes, Crowther cruzou-se com Lean, dirigindo-lhe um caloroso cumprimento: “Nem penses, Bosley”, foi a resposta. Digamos, para simplificar, que é preciso de tudo para tentarmos ser dignos da complexidade dos grandes filmes, incluindo prestar alguma atenção aos movimentos imponderáveis das areias.