sexta-feira, junho 29, 2018

Frankenstein, aliás, Mary Shelley

Elle Fanning
A autora de Frankenstein, Mary Shelley, é evocada por Haifaa Al-Mansour, cineasta da Arábia Saudita — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Junho), com o título 'O mito de Frankenstein revisto por uma cineasta saudita'.

Tempos fascinantes, estes de ávido questionamento das formas de representação — em particular no cinema — do universo feminino. Sem esquecer que qualquer processo desse teor envolve também as complexidades do masculino (mesmo quando os discursos ”militantes” tentam reduzir o masculino a um fantasma maligno ou a um pormenor dispensável). Reparemos num filme como Mary Shelley. A sua simples descrição envolve uma curiosa pluralidade: aqui está uma coprodução europeia (Reino Unido/Irlanda/Luxemburgo), evocando a escrita do romance gótico Frankenstein por Mary Shelley (1797-1851), com a americana Elle Fanning a assumir o papel central, pertencendo a realização a uma mulher nascida na Arábia Saudita, Haifaa Al-Mansour.
Aproximamo-nos do filme através das memórias de muitas adaptações de Frankenstein com que o cinema tem relançado o mito da criação de um novo ser humano (lembremos o título integral do romance: Frankenstein ou o Moderno Prometeu). Ao mesmo tempo, cedo compreendemos que este não é um filme dependente da representação da “coisa” criada por Victor Frankenstein, mas sim centrado em algo que, historica e simbolicamente, antecede a dimensão cinematográfica: o desejo que presidiu à sua criação literária.
Por aí passa, aliás, uma fundamental componente dramática. Como filha de um casal de escritores (William Godwin e Mary Wollstonecraft), Mary vive uma insólita contradição existencial: há nela um impulso para a escrita que não encontra eco nos valores dominantes, de algum modo aconselhando-a a não se lançar em tais ousadias; ainda de acordo com tais valores, o seu gosto pelo mundo literário das trevas surge como coisa menor perante a poesia do marido, Percy Bysshe Shelley (1792-1822).
O filme consegue fazer passar uma ideia subtil, contrária a qualquer simplismo feminino ou maniqueísmo feminista. A saber: os artifícios do universo criado por Mary em Frankenstein estão longe de a afastar do mundo em que vivia. Desde logo, porque a história do homem que desafia a criação divina é indissociável das convulsões e experimentações da ciência da época; depois, porque como lhe diz Claire (meia irmã de Mary), as singularidades criativas de Frankenstein consagram também a sua identidade feminina.

Memória de Wadjda

No papel de Mary, Elle Fanning dá mais uma prova da sua delicada versatilidade, ela que, apenas com 20 anos (celebrados no passado dia 9 de Abril), se pode considerar uma veterana — começou aos 3 anos, assumindo a versão mais nova da personagem interpretada pela irmã, Dakota Fanning, em I Am Sam – A Força do Amor (2001), filme de Jessie Nelson com Sean Penn e Michelle Pfeiffer. Entre os momentos emblemáticos da sua carreira incluem-se A Porta no Chão (2004), Babel (2006), Super 8 (2011) e Mulheres do Século XX (2016).
De alguma maneira, a personagem de Fanning prolonga a visão de Haifaa Al-Mansour que conhecíamos através de O Sonho de Wadjda (2012), primeiro filme dirigido por uma mulher da Arábia Saudita. A personagem central desse filme tinha, de facto, um sonho: possuir uma bicicleta. Para ela, era algo tão vital como escrever um romance sobre a nossa convivência com os monstros.