domingo, abril 29, 2018

"Lara Croft" ou os jogos contra o cinema

A. Vale a pena reflectir um pouco sobre a conjuntura audiovisual que os jogos de video geraram, tomando como pretexto o trailer de Shadow of the Tomb Raider, produto da Square Enix com lançamento agendado para Setembro. Trailer, exactamente, já que este tipo de consumo se foi colando, estrategicamente, à indústria e ao comércio dos filmes, parasitando todas as suas componentes, da pré-produção ao marketing — na prática, não há diferença conceptual entre um trailer como este ou o de um qualquer título com chancela dos estúdios Marvel (ou da DC Comics).

B. Três vectores narrativos triunfam:
1 — o esvaziamento da noção de plano: a composição do espaço, logo, a gestão do tempo deram lugar a um fluxo visual em que a aceleração já não é um dispositivo dramático, mas uma lei obrigatória;
2 — a arbitrariedade da narrativa: não por acaso, deparamos aqui com uma típica voz off cuja função se reduz à criação de uma ilusão de continuidade — trata-se apenas de gerar alguma expectativa pelo quadro seguinte do jogo;
3 — a formatação do corpo: a figuração humana passou a confundir-se com a criação de um outro tipo de ilusão (corporal, precisamente) que menospreza qualquer singularidade material — Lara Croft, Homem de Ferro, Batman ou qualquer outra personagem, todos foram desumanizados, existindo apenas como paleta digital.

C. Porque é que muitos jovens apenas consomem os filmes que, de uma maneira ou de outra, repetem estes vectores? Eis uma boa pergunta, inevitavelmente ligada a uma dúvida pedagógica: como é que um espectador apenas educado através deste modelo de imagens/sons pode ter agilidade mental e disponibilidade emocional para lidar com a riqueza de composição e narrativa de um filme de Jean Renoir, Ingmar Bergman ou John Cassavetes? Vale a pena formular tais questões a partir de exemplos como esta Lara Croft, exemplos que, metodicamente, se vão definindo e consolidando contra qualquer ideia de cinema.


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* PERSONA (1966), de Ingmar Bergman