sexta-feira, fevereiro 02, 2018

Cinema, televisão e relações humanas

William Hurt, BROADCAST NEWS (1987)
A propósito de The Post, vale a pena recordar algumas referências da grande tradição liberal de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Janeiro), com o título 'No labirinto dos nossos ecrãs'.

O novo filme de Steven Spielberg, The Post, evoca um momento fulcral da história do jornalismo. As suas personagens principais são os jornalistas de The Washington Post que, em 1971, divulgaram os “Pentagon Papers”, expondo a manipulação da verdade (sobre a guerra do Vietname) pela administração de Richard Nixon. Ao descobri-lo, pensei, claro, em Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, afinal o capítulo seguinte da mesma saga, com The Washington Post a ser o lugar central da desmontagem do escândalo Watergate (que conduziria à queda de Nixon).
Em tempos de proliferação de ecrãs, circuitos virtuais e aceleração (des)informativa, pergunto-me se haverá espectadores que olhem The Post como uma aventura pitoresca, mais ou menos caricata... Afinal de contas, aquela gente utiliza máquinas de escrever, não existem computadores nem telemóveis e há mesmo quem, para fazer uma chamada secreta, vá à cabine telefónica que fica nas traseiras do prédio...
Permito-me, por isso, recordar que The Post pertence a uma linhagem nobre de Hollywood que nunca desistiu de celebrar o trabalho jornalístico, expondo as suas glórias e misérias. Pensei também no filme de James L. Brooks, Broadcast News (1987), entre nós intitulado Edição Especial. Retratando o dia a dia de uma redacção televisiva, há nele uma cena inesquecível em que uma jornalista (Holly Hunter) descobre que um colega (William Hurt) manipulou uma reportagem que fez, utilizando imagens de si próprio a chorar, reagindo às palavras do seu entrevistado. Que aconteceu? Vendo os materiais da reportagem, ela compreende (e nós com ela) que as imagens do choro não pertencem à conversa, tendo sido registadas a posteriori.
O que me interessa nessa cena subtil não é qualquer efeito de generalização que, aliás, o filme não contém — Brooks filma a partir de uma evidente admiração pelo universo televisivo. O que a cena dá a ver, literalmente, é a componente de montagem que as imagens sempre envolvem: filmar, registar o mundo à nossa volta, não é reproduzir o que quer que seja, antes produzir uma narrativa a partir das imagens (e sons) que se recolhem.
Nesta perspectiva, há algo de admirável no filme de Brooks que também perpassa pelo modo como Spielberg dá a ver a vida interna de um jornal: Broadcast News mostra a televisão, não como um aparato de técnicas abstractas, antes como um universo de pessoas concretas. Precisamente o oposto de qualquer visão tecnocrática: palavras e imagens existem como um labirinto de relações humanas.