quinta-feira, janeiro 18, 2018

Sorkin & Chastain (2/2)

Aaron Sorkin escreveu e realizou, Jessica Chastain interpreta: Jogo da Alta Roda é, entre nós, uma das primeiras grandes estreias de 2018 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Janeiro), com o título 'Aaron & Jessica'.

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Alfred Hitchcock e Grace Kelly. John Ford e John Wayne. Jean-Luc Godard e Anna Karina. Sydney Pollack e Robert Redford. André Téchiné e Catherine Deneuve. A história do cinema apresenta-nos muitas relações de trabalho entre realizadores e intérpretes que distinguimos pela singularidade dos seus resultados. Sentimos mesmo que há actores e actrizes que, independentemente do brilhantismo de outras composições, exibem um suplemento (de alma, talvez) quando dirigidos por determinados cineastas.
Molly's Game
É cedo para dizer se Aaron Sorkin e Jessica Chastain têm, ou vão ter, uma relação desse teor — Jogo da Alta Roda é, afinal, a primeira realização de Sorkin. Em qualquer caso, a sua maneira de contar a história de Molly Bloom, promotora de jogos de poker, é tanto mais fascinante quanto o filme vai escapando, ponto por ponto, às soluções mais fáceis e, sobretudo, mais moralistas que tal história podia atrair.
Especialmente interessante (porventura frustrante para alguns espectadores) é a frieza erótica que contamina todos os aspectos do filme. Sedução do dinheiro? Transfiguração de Molly em objecto de desejo por causa do dinheiro que manipula? Atracção feérica da “alta roda” que, com algum simplismo, está no título português? Nada disso. Este é, de facto, um filme sobre o jogo de Molly (recorde-se o título original: Molly’s Game) e o seu enigma primordial cujo assombramento ela parece querer superar através da própria vertigem de milhões de dólares em que se envolve. Daí a beleza radical da cena com que Sorkin decide encerrar o seu filme. Explicando o enigma de Molly? Sim, até certo ponto, mas sobretudo mostrando que a identidade de um ser humano não cabe em nenhum cliché dramático — chama-se a isso ser um grande narrador.