terça-feira, janeiro 16, 2018

O "Big Brother" contra Antonioni

David Hemmings em Blow-up (1966) 
Chegámos ao ponto em que o fundamentalismo sexual se atreve a difamar Michelangelo Antonioni — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Janeiro), com o título 'É preciso defender Antonioni'.

Desde o ano 2000, o Big Brother e as suas derivações são uma presença regular no espaço televisivo português. Aí assistimos a um metódico programa de achincalhamento humano, envolvendo três componentes principais: encenação “voyeurista” da sexualidade, redução dessa sexualidade a tabelas de performances genitais e transformação das mulheres em objectos instrumentais de qualquer relação sexual.
A maioria dos discursos políticos, do esvaziamento intelectual das direitas à vocação moralista das esquerdas, mantém-se indiferente a tudo isso. É fácil, por exemplo, um dia depois da morte de Manoel de Oliveira, rasurar décadas de insultos e difamações, consagrando-o como um “mestre”; é francamente mais difícil dizer alguma coisa de consistente sobre o sistema de imagens que habitamos.
Michelangelo Antonioni
Não se trata de uma questão especificamente portuguesa, como é óbvio. Veja-se, na imprensa francesa, os protestos suscitados pelo notável texto de uma centena de mulheres sobre a vaga de acusações de assédio sexual (Le Monde, 9 Janeiro). Tais protestos seguem uma lógica pueril: empolam uma palavra ou uma expressão, omitem o seu contexto (o longo texto surgiu quase sempre reduzido a equívocos fragmentos) e apelam à queima dos infiéis na fogueira “social”. Há mesmo quem argumente que as signatárias — as actrizes Ingrid Caven e Catherine Deneuve, a escritora Catherine Millet, a editora Joëlle Losfeld, etc. — estão a branquear a gravidade dos crimes de que é acusado, por exemplo, Harvey Weinstein. Aliás, nos EUA, aconteceu algo semelhante a Matt Damon: veio apenas solicitar que se use a inteligência — não fazendo equivaler a violência de uma violação à gravidade de um gesto obsceno num cenário de emprego — e tanto bastou para que fosse rotulado de monstro machista. A actriz Minnie Driver colocou-se mesmo do outro lado da sua (imaginária) barreira, dizendo que “os homens não podem compreender”.
Está, assim, transformado numa arena de muitos ruídos e nenhuma ideia aquilo que seria um bom contexto de reflexão sobre o masculino/feminino e, em particular, os dispositivos mediáticos que, em nome da “sensualidade”, reduzem as mulheres a objectos sexuais (e, não poucas vezes, também os homens). Como lembra o texto das mulheres francesas, há até fundamentalismos apostados em desqualificar a obra-prima de Michelangelo Antonioni, Blow-up (1966), por causa da sua “misoginia”... Como? Será crime ter descoberto o cinema através das Novas Vagas europeias dos anos 60/70? Era o que mais faltava.