domingo, janeiro 14, 2018

Memórias dos Talking Heads

Stop Making Sense já está disponível em DVD: um clássico absoluto do "filme-concerto" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Janeiro), com o título 'Um palco para música e cinema'.

Há dias, num “zapping” por alguns canais de televisão, deparei com um noticiário da MTV. Nenhuma surpresa, é um facto, mas não deixa de ser chocante a banalidade a que chegou a “televisão da música”. Para além de ter integrado os horrores da “reality TV”, incluindo alguns programas sinistros sobre o “arranjo” de casais, a MTV já nem trata com um mínimo de cuidado as mais simples notícias sobre as actividades musicais. Os apresentadores riem-se muito e tudo passa muito depressa no ecrã, contrariando a simples possibilidade de olhar o que quer que seja. Nem sequer persiste o gosto de valorizar a própria música — é a aceleração pela aceleração, tudo em nome da alegria da “juventude” que, supostamente, se quer celebrar.
Jonathan Demme
Eis um revelador contraste. Ao mesmo tempo que esta mediocridade comunicacional (?) triunfa no reino da televisão “juvenil”, o mercado do DVD dá-nos a possibilidade de redescoberta de um dos grandes clássicos do “filme-concerto”: Stop Making Sense (1984), com os Talking Heads, numa realização de Jonathan Demme.
É bem provável que, ainda em nome da “juventude”, haja quem tenha gosto em reduzir os Talking Heads e o seu líder, David Byrne, a uma curiosidade dispensável, a abolorecer nas caves esquecidas de um qualquer museu. Há de tudo neste mundo... Acontece que Stop Making Sense, fabricado a partir de três concertos dos Talking Heads no Hollywood Pantages Theatre, em Dezembro de 1983, exemplifica uma lógica muito especial de relação entre a concepção cénica do trabalho de uma banda e as componentes específicas de um olhar cinematográfico.
Numa linguagem que o palco do evento justifica, podemos até dizer que Demme e os Talking Heads delinearam um modelo de colaboração teatral: a performance da banda e o registo das câmaras evoluem, canção a canção, numa cumplicidade que, além do mais, explora de forma brilhante as possibilidades de montagem, do grande plano de pormenor à visão geral do palco.
Falecido em 2017, contava 73 anos, Demme não foi apenas o realizador de títulos tão marcantes como Selvagem e Perigosa (1986), O Silêncio dos Inocentes (1991) ou Filadélfia (1993). A sua relação com a música esteve na base de importantes abordagens documentais — por exemplo: Neil Young: Heart of Gold (2006) — e até, por vezes, no domínio da ficção, de experiências fascinantes como esse retrato de uma veterana cantora rock, interpretada por Meryl Streep no maravilhoso Ricki e os Flash (2015) [video]. O filme nem sequer foi muito noticiado, mas a MTV não tem culpa de tudo.