Stop Making Sense já está disponível em DVD: um clássico absoluto do "filme-concerto" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Janeiro), com o título 'Um palco para música e cinema'.
Há dias, num “zapping” por alguns canais de televisão, deparei com um noticiário da MTV. Nenhuma surpresa, é um facto, mas não deixa de ser chocante a banalidade a que chegou a “televisão da música”. Para além de ter integrado os horrores da “reality TV”, incluindo alguns programas sinistros sobre o “arranjo” de casais, a MTV já nem trata com um mínimo de cuidado as mais simples notícias sobre as actividades musicais. Os apresentadores riem-se muito e tudo passa muito depressa no ecrã, contrariando a simples possibilidade de olhar o que quer que seja. Nem sequer persiste o gosto de valorizar a própria música — é a aceleração pela aceleração, tudo em nome da alegria da “juventude” que, supostamente, se quer celebrar.
Jonathan Demme |
Eis um revelador contraste. Ao mesmo tempo que esta mediocridade comunicacional (?) triunfa no reino da televisão “juvenil”, o mercado do DVD dá-nos a possibilidade de redescoberta de um dos grandes clássicos do “filme-concerto”: Stop Making Sense (1984), com os Talking Heads, numa realização de Jonathan Demme.
É bem provável que, ainda em nome da “juventude”, haja quem tenha gosto em reduzir os Talking Heads e o seu líder, David Byrne, a uma curiosidade dispensável, a abolorecer nas caves esquecidas de um qualquer museu. Há de tudo neste mundo... Acontece que Stop Making Sense, fabricado a partir de três concertos dos Talking Heads no Hollywood Pantages Theatre, em Dezembro de 1983, exemplifica uma lógica muito especial de relação entre a concepção cénica do trabalho de uma banda e as componentes específicas de um olhar cinematográfico.
Numa linguagem que o palco do evento justifica, podemos até dizer que Demme e os Talking Heads delinearam um modelo de colaboração teatral: a performance da banda e o registo das câmaras evoluem, canção a canção, numa cumplicidade que, além do mais, explora de forma brilhante as possibilidades de montagem, do grande plano de pormenor à visão geral do palco.
Falecido em 2017, contava 73 anos, Demme não foi apenas o realizador de títulos tão marcantes como Selvagem e Perigosa (1986), O Silêncio dos Inocentes (1991) ou Filadélfia (1993). A sua relação com a música esteve na base de importantes abordagens documentais — por exemplo: Neil Young: Heart of Gold (2006) — e até, por vezes, no domínio da ficção, de experiências fascinantes como esse retrato de uma veterana cantora rock, interpretada por Meryl Streep no maravilhoso Ricki e os Flash (2015) [video]. O filme nem sequer foi muito noticiado, mas a MTV não tem culpa de tudo.