quinta-feira, dezembro 14, 2017

O tempo segundo Richard Linklater

Bryan Cranston + Steve Carell + Laurence Fishburne
No novo filme de Richard Linklater, Derradeira Viagem, os traumas da guerra do Vietname cruzam-se com as memórias próximas da guerra do Iraque — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Dezembro), com o título 'Richard Linklater encena drama vivido por três veteranos do Vietname'.

É pena que os espectadores de cinema, sobretudo os mais jovens, tenham sido (des)educados por uma visão tecnicista e fútil do cinema americano e, em particular, de Hollywood. Lembremos, por isso, o mais rudimentar: quando citamos Hollywood, estamos a falar de uma das mais ricas, e também mais complexas, paisagens criativas de toda a história do cinema, regularmente prolongada e, de alguma maneira, reinventada pelos cineastas do presente. Richard Linklater é um desses cineastas e o seu novo filme, Derradeira Viagem, poderá servir de símbolo modelar do misto de fascínio e complexidade com que, ao longo das décadas, a América se tem contemplado, pensado e criticado através de muitos produtos de Hollywood.
Quem viu Boyhood: Momentos de uma Vida (2014), recordar-se-á do gosto de Linklater pela metódica observação das marcas do tempo nos seres humanos, nos seus corpos e pensamentos. Narrando a existência de uma personagem desde a infância até ao fim da adolescência, Boyhood consumava mesmo a aposta extrema de sobrepor o tempo da história ao tempo da produção: o filme foi rodado ao longo de 12 anos, registando as transformações dos seus actores, com natural destaque para o principal, o jovem Ellar Coltrane.
A saga do tempo inscreve-se também em Derradeira Viagem (título original: Last Flag Flying), ligando as memórias da guerra do Vietname com o envolvimento militar dos EUA no Iraque. A acção decorre em 2003, quando um veterano do Vietname (Steve Carell, confirmando as suas admiráveis qualidades muito para além do registo cómico) solicita a dois companheiros de armas, que já não vê há muitos anos (Bryan Cranston e Laurence Fishburne), que o acompanhem numa penosa tarefa: organizar o funeral do seu filho, morto em combate no Iraque.
Estamos muito longe de qualquer maniqueísmo de esquerda, demonizando tudo o que venha das multifacetadas expressões culturais do outro lado do oceano, ou de direita, celebrando os EUA como “polícias do planeta”. Derradeira Viagem é um filme de uma sociedade atravessada por muitas diferenças e contradições, sabendo expor os silêncios, cumplicidades e tensões com que se cruzam os valores colectivos e as expressões singulares de cada individualidade.
Linklater filma tudo isso aplicando as leis da mais depurada narrativa clássica, ainda e sempre conferindo ao trabalho dos actores uma função essencial (e não será uma surpresa se, pelo menos, Steve Carell conseguir chegar às nomeações para os Oscars). Baseado num romance de Darryl Ponicsan, Derradeira Viagem prolonga a história das três personagens que o escritor apresentara em The Last Detail, também adaptado ao cinema, por Hal Ashby em 1973, com Jack Nicholson no papel central (entre nós intitulado O Último Dever). Que é como quem diz: escrever a história é também reescrevê-la.