terça-feira, dezembro 26, 2017

O sol interior de Claire Denis

Juliette Binoche em O Meu Belo Sol Interior
O Meu Belo Sol Interior confirma a condição solitária de Claire Denis no interior da produção cinematográfica francesa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Dezembro), com o título 'Um Belo Sol Interior'.

Nascida em Paris, em 1946, Claire Denis continua a ser uma cineasta “não-alinhada” do cinema francês. Ora filma em anos consecutivos, ora cumpre paragens mais ou menos dilatadas. Cada um dos seus filmes parece mesmo concebido para desmentir a “tendência” do anterior, numa lógica lúdica de pesquisa a que não é estranha uma saborosa ironia existencial.
Observe-se o exemplo de O Meu Belo Sol Interior, com Juliette Binoche, mostrado na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, agora lançado nas salas portuguesas. Objecto luminoso, sem dúvida, tal como o título sugere. Aliás, a sua irredutibilidade pode medir-se através das discretas, mas significativas, atribulações dos títulos que lhe têm sido dados.
O original — Un Beau Soleil Intérieur — não atribui esse enigmático sol a ninguém. Não se trata de identificar um sol que é “meu” (da personagem central), mas sim de nomear uma entidade que pertence a alguma interioridade. A saber: “um belo sol interior”. Quanto ao título inglês, Let the Sunshine In (à letra: “Deixem o sol entrar”), tem qualquer coisa de palavra de ordem “hippie” convertida em anúncio de detergente para a roupa...
Bem sabemos que vivemos numa sociedade cujo linguajar está ocupado por muitos lugares-comuns anglo-saxónicos (há dias, ouvi mesmo um comentador de golfe dizer, com legítima felicidade, que tinha estado a observar a “body language” de um determinado jogador...). A atenção às subtilezas da língua francesa pode até ser taxada de delírio “intelectual” de que o comum dos mortais se deve abster.
Acontece que, na odisseia emocional da personagem interpretada por Binoche (numa das composições mais sofisticadas de toda a sua carreira), o que mais conta é essa descoberta de um “sol interior” que não é sua propriedade, mesmo se ela sente e pressente que o seu calor marca todos os aspectos da sua existência e, muito em particular, o seu intenso interesse pelo mundo masculino. Claire Denis filma o enigmático anonimato do desejo: algo que nos projecta no mistério imenso de outra pessoa, iludindo-nos com a sua luminosa transparência, numa cegueira que, precisamente, desejamos.
Eis, assim, um filme serenamente fora de moda. Aqui encontramos uma personagem feminina que não depende da demonização automática dos homens. Mais do que isso: sendo muitas vezes claramente sexual, o seu fascínio por alguns homens não envolve a discussão de performances ou intensidades, “apenas” a utopia de um desejo poder encontrar outro desejo. Dir-se-ia um belo filme natalício.