quinta-feira, dezembro 21, 2017

A verdade de Cuca Roseta (2/2)

Com o seu novo álbum, Luz, Cuca Roseta propõe diversos registos, incluindo algumas variações pop: em qualquer caso, é o fado que continua a definir a sua verdade artística — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Dezembro), com o título '"O canto e a sua razão'.

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Em paralelo com o novo disco Luz, Cuca Roseta publica o livro Poemas (Oficina do Livro), reforçando uma via criativa presente desde o seu primeiro álbum, intitulado apenas Cuca Roseta (2011). Aí, a sua letra de Nos Teus Braços (com música também de sua autoria) surgia como primeiro e exemplar reflexo de um desejo criativo que trabalha a herança do fado através de um misto de nostalgia e inovação [video]. A primeira quadra do primeiro poema do livro, “Versos contados”, será um bom lema: “Do meu fado fiz a letra / E da letra fiz canção / Fado tem sua ciência / Não se canta sem razão”.


Neste trajecto que agora desemboca na luminosidade de Luz (a simbologia não é redundante), deparamos com o mais primitivo fantasma do fado e dos fadistas. A saber: como continuar a tradição num mundo cultural e comercial que, para o melhor ou para o pior, mudou de forma brutal desde que o génio artístico de Amália Rodrigues arriscou todas as experimentações?
Na avalanche que se seguiu ao reconhecimento do fado como património imaterial da humanidade, convenhamos que temos deparado com os mais inconciliáveis contrastes. Acontece que Cuca Roseta se define (também) como uma cantora pop, o que talvez ajude a explicar o fulgor do álbum de estreia, produzido por Gustavo Santaolalla (a meu ver, uma das raras obras-primas absolutas da música portuguesa do século XXI). Sendo Santaolalla um mestre das ligações da música com as imagens de cinema (lembremos apenas a sua banda sonora para Babel, de Alejandro González Iñárritu), talvez possamos dizer que, de modo inusitado e fascinante, o compositor argentino compreendeu as raízes de todo um imaginário português — como se o fado fosse essa perversão que inventámos para sermos estrangeiros dentro da nossa própria história.