sexta-feira, novembro 10, 2017

O desafio de Jake Gyllenhall (2/2)

O atentado na Maratona de Boston, em 2013, volta a inspirar um filme, desta vez dominado por uma brilhante interpretação de Jake Gyllenhaal, desafiando os limites de representação do próprio corpo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Novembro), com o título 'O corpo e a sua verdade'.

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É bem provável que a composição de Jake Gyllenhaal em Stronger – A Força de Viver venha a ser castigada por um velho preconceito. A saber: a interpretação de personagens com algum tipo de limitação, física ou mental, seria um trabalho fácil e mecânico, no limite, oportunista. Vale a pena reflectir um pouco sobre tal ponto de vista. Não porque tais personagens sejam um aval do que quer que seja, tanto para os intérpretes, como para os próprios filmes. O certo é que nunca se ouviu ninguém a questionar a dignidade artística de um actor por, por exemplo, representar um violento assassino... Que faz, então, com que as características das personagens sejam consideradas de modo tão contrastado?
Não tenho respostas lineares, muito menos seguras, ficando-me apenas pela certeza mais primitiva: cada caso é um caso. Apesar disso (ou precisamente por causa disso), não posso deixar de notar que há personagens que envolvem desafios extremos, dramáticos e dramatúrgicos, ao corpo do próprio actor. Lembremos o génio autista de Rain Man (1988) ou o pintor atingido por paralisia cerebral em O Meu Pé Esquerdo (1989), interpretados, respectivamente, por Dustin Hoffman e Daniel Day-Lewis (ambos distinguidos com o Oscar de melhor actor). O que os liga não é uma qualquer definição abstracta de “deficiência”, antes a verdade muito concreta de cada corpo.
Neste tempo de super-heróis de corpo digital, castigando os mais talentosos actores (observe-se o desaparecimento de Robert Downey Jr. nas vestes do Homem de Ferro), importa valorizar tal verdade. Mais do que isso: importa celebrar a irredutível vibração que um corpo pode inscrever nas imagens. Stronger – A Força de Viver não terá o fulgor de um filme de Ingmar Bergman, mas não nos fica mal lembrar a sua herança.