Será que Tom Cruise está para sempre enredado no modelo das suas "missões impossíveis"? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Agosto), com o título 'Tom Cruise protagoniza aventura dos anos 80'.
Até quando a carreira de Tom Cruise vai ficar dependente do modelo de Missão Impossível? A pergunta é, de uma só vez, artística e comercial, material e simbólica. E reaparece face ao seu novo filme, Barry Seal: Traficante Americano [American Made]. Através dela, deparamos com uma outra, porventura mais dramática: será possível manter uma carreira de estrela cultivando “apenas” um modelo de herói de filme de acção?
Em boa verdade, a nova realização de Doug Liman (que já dirigira o actor em 2014, na aventura de ficção científica Edge of Tomorrow/No Limite do Amanhã), envolve algumas memórias intensas, perturbantes e fascinantes. Desde logo, porque a personagem verídica de Barry Seal, piloto de voos comerciais da TWA, é um vendaval de contradições.
Assim, em finais da década de 1970, Seal foi contactado pela CIA com uma “proposta irrecusável”: as autoridades esqueceriam o facto de conhecerem o seu contrabando de charutos cubanos em troca de um pequeno “serviço”. A saber: fazer voos para fotografar os campos militares de algumas organizações de guerrilha em países da América do Sul. Digamos que as viagens se vão complicando porque Seal vai aceitando as mais inusitadas missões, desde servir de correio entre a CIA e o general Manuel Noriega, no Panamá, até transportar cocaína para o cartel de Medellin, na Colombia... Como pano de fundo de tudo isto, estavam as políticas do presidente Ronald Reagan para a América do Sul e, por fim, o escândalo político que ficou conhecido como Irão-Contras.
Que faz o filme com todos estes dados? Tenta encontrar uma solução de “compromisso” entre os sinais da época e a pose aventureira de Cruise, típica da sua personagem de Ethan Hunt, em Missão Impossível. Como resolver a quadratura do círculo?
Repare-se: não está em causa que a série Missão Impossível tenha gerado alguns dos grandes espectáculos das últimas décadas, com inevitável destaque para o primeiro capítulo, realizado em 1996 por Brian De Palma. Acontece que tal vocação espectacular — apoiada numa crescente sofisticação tecnológica — dificilmente se adequa à crueza dos factos evocados em Barry Seal: Traficante Americano.
A certa altura, o filme parece-se mesmo com um anedótico jornal televisivo: a colagem de pequenas peripécias de grande agitação visual resulta menos do dramatismo interior dos factos e mais da necessidade (?) de acumular proezas mais ou menos feéricas protagonizadas pela sua vedeta. Convenhamos que Cruise se sente muito à vontade no meio de tudo isso, até porque há nele uma contagiante energia física que o leva a não recorrer a duplos (há poucas semanas, aliás, foi noticiado um pequeno acidente que ele protagonizou na rodagem de Missão Impossível 6, a estrear em 2018). Resta saber se tanto basta para fazer um filme consistente.
Se os filmes têm um inconsciente, talvez possamos dizer que este pertence ainda a uma galeria de memórias americanas sobre os fantasmas dos conturbados anos 80 cujo título fundador, desmontando as perversões do mundo financeiro, terá sido Wall Street (1987), de Oliver Stone. Na sua evidente competência de execução, Barry Seal: Traficante Americano ganhava em lidar mais com esses fantasmas e menos com a “imagem de marca” de Tom Cruise. Até porque nos lembramos de A Cor do Dinheiro (Martin Scorsese, 1986), A Firma (Sydney Pollack, 1993) ou Relatório Minoritário (Steven Spielberg, 2002) e sabemos que ele pode ser brilhante.