Será que podemos definir um romance através de uma ideia — no limite, uma frase — que, a partir do momento em que é enunciada, parece contaminar todas as personagens e, em boa verdade, todos os elementos da sua escrita?
O fascínio de um romance como O Pianista de Hotel, de Rodrigo Guedes de Carvalho, pode, talvez, condensar-se na ideia/frase/aforismo que emerge na pág. 166: "O nosso corpo chega sempre aos outros antes de nós". Dir-se-ia uma derivação desse desafio, ao mesmo tempo crítico e existencial, que Roland Barthes enunciava quando, em O Prazer do Texto (1973), se propunha "seguir as ideias do meu corpo". Porquê? Porque "o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu".
O Pianista de Hotel talvez se possa definir como uma encruzilhada de personagens condenadas a viver essa discrepância entre a sua chegada aos outros e aquilo que o seu corpo já fez acontecer antes de eles lá chegarem. Daí que sintamos que nenhuma medida tradicional do tempo se adequa à descrição do calendário que as personagens habitam. Assim, por exemplo, logo nas primeiras páginas, Maria Luísa sente-se interpelada pela presença silenciosa da mãe ("Ouviu. Ou não ouviu?"). O certo é que a mãe está morta — e ela sabe que a mãe está morta. Umas três centenas de páginas mais tarde, a perturbação reacende-se, Maria Luísa regressa à cena inicial, e o leitor é convocado para a maravilha primitiva da literatura: o romance parece estar a entrar na fase "obrigatória" de resolução das suas tensões internas e, apesar disso, ou melhor, através disso, tudo se passa como se o escritor e nós com ele nos mantivéssemos a inventariar a paisagem infinita de um só instante.
Rodrigo Guedes de Carvalho |
Apetece dizer que este é um romance que "parece" um filme — a presença de Hitchcock nas citações de abertura não é, obviamente, um acidente. Em qualquer caso, tal "parecença" não decorre do simples reconhecimento de que encontramos aqui matéria susceptível das mais sugestivas transfigurações. Acontece que O Pianista de Hotel possui do cinema (do grande cinema, acrescento eu) essa capacidade, ao mesmo tempo realista e mágica, de nos fazer experimentar a instabilidade do tempo, mesmo quando, por uma espécie de pueril crença social, o identificamos como "apenas" linear.
Vivemos, aliás, uma época assombrada por um equívoco filosófico, todos os dias ampliado por uma das mais poderosas convenções da linguagem televisiva. A saber: o de que é possível mostrar/descrever/representar o que quer que seja em tempo real. Como se uma imagem (ou um som) não fosse já um outro tempo do mesmo tempo. Como se, enfim, a complexidade do ser se pudesse libertar das infinitas ambivalências do tempo e suas percepções (relembremos Hitchcock, reveja-se Mankiewicz). Na verdade, aquilo que definimos como realidade sancionada pelo tempo não passa de uma conjuntura afectiva e social, concreta e abstracta, em que alimentamos a ilusão de possuir uma identidade segura, transparente e definitiva. Como se, protagonistas incautos de uma história que julgamos controlar, pudéssemos chegar ao mesmo tempo que o nosso corpo.
Em última instância, a lição moral de O Pianista de Hotel envolve esse labor homérico (bom adjectivo...) com o prelúdio do tempo e a sua constante fuga. Retomando a máxima de Ortega y Gasset que vai circulando pelo livro, diremos que um romance é sempre um romance e a sua circunstância. Ou ainda: com ou sem pauta, a escrita pode ser, como aqui acontece, um acontecimento de delicada e inquieta musicalidade.