Um filme búlgaro, Glória, propõe um curioso retrato das tensões sociais e profissionais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Junho).
Provavelmente, nas sociedades que viveram sob o domínio do comunismo soviético existe uma espécie de inconsciente colectivo (ou ideologia romanesca) que leva a que os conflitos de classe adquiram quase sempre a dimensão de parábola social. Mais do que isso: o “socialismo real” deixou, insolitamente, um profundo sentimento de descrença em relação às hipóteses de harmonização das relações humanas. Evitando generalizações apressadas, digamos apenas que alguns filmes provenientes dessas sociedades nos vão contando histórias que reflectem tudo isso, num misto de cepticismo moral e implacável sarcasmo.
Assim acontece com Glória, de Petar Valchanov e Kristina Grozeva, que terá sido, em 2016, o mais internacional dos títulos produzidos pela pequena cinematografia da Bulgária (o ano gerou dezassete novas longas-metragens). A história do empregado dos caminhos de ferro que decide devolver a grande quantia de dinheiro que descobre espalhada nos carris é, afinal, um amargo conto moral — o seu gesto valer-lhe-á o confronto desigual com um sistema de golpes e favores ocultos.
O filme corre constantemente o risco de se reduzir a um sistema simbólico afinal herdado de algum cinema mais ou menos oficial, tratando cada personagem como expressão transitória de uma ideia (de inocência ou corrupção) previamente definida. Se, apesar de tudo, Glória escapa a essa facilidade, isso deve-se a um gosto pela irredutibilidade das personagens que tem o seu mais forte ponto de apoio na qualidade global do elenco.
Curiosamente, este é um filme que reflecte uma certa ânsia realista que vai atravessando muitas formas europeias de cinema — como se, face às obscenidades triunfantes da “reality TV”, tivéssemos absoluta necessidade de alguma verdade à flor da pele.