terça-feira, junho 20, 2017

"Girls Night" — comédia?...

Nada de novo na comédia americana... Girls Night esqueceu o património clássico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Junho), com o título 'Scarlett Johansson lidera comédia pouco inspirada'.

Há um curioso lugar-comum que insiste em proclamar que os críticos de cinema não gostam de comédias... Como se nunca ninguém tivesse dado atenção a Charlie Chaplin e Buster Keaton, Jerry Lewis, Jacques Tati ou Woody Allen. Em boa verdade, face a Girls Night [Rough Night], o problema é de outra natureza. A saber: como é que o filme aguenta a comparação com tais referências? Ou ainda: será que sabe, ou não, honrar a esplendorosa tradição de humor inscrita no património de Hollywood?
Na melhor das hipóteses, digamos que Girls Night se apresenta como uma tentativa de refazer, em tom feminino, o sucesso de The Hangover/A Ressaca (2009). É bem certo que este era um bom exemplo de uma certa recuperação nostálgica do burlesco clássico, mas foi rapidamente desbaratado nas suas “obrigatórias” sequelas. Girls Night sofre, afinal, do mesmo problema que tem assolado os “blockbusters” de super-heróis — produzem-se cópias atrás de cópias, obedecendo a uma lógica que já não envolve nenhum desejo de cinema, de tal modo está assombrada pelos valores de um marketing estranho a qualquer dimensão cinéfila.
Em A Ressaca, um grupo masculino viajava até Las Vegas para a festa de despedida de solteiro de um dos seus elementos. Agora, em Girls Night, encontramos quatro mulheres — Scarlett Johansson, Jillian Bell, Zoë Kravitz e Ilana Glazer — apostadas em desafiar todos os limites para, na noite de Miami, celebrar o casamento próximo de uma delas (Johansson). Cedo compreendemos que o ritmo da comédia, suas nuances e ambiguidades, é coisa pouco interessante para a realizadora estreante Lucia Aniello — confunde-se o humor com a acumulação de anedotas obscenas que, em última instância, apenas reflectem a degradação dos padrões, também eles clássicos, da “stand-up comedy”.
Digamos, então, que tudo corre mal... O grupo contrata um “stripper” para animar (?) a sua noite, mas na confusão que se gera ocorre um incidente trágico: o “stripper” morre numa queda, elas tentam esconder o corpo, o noivo intrigado com alguns telefonemas agitados decide rumar a Miami e aparecem dois homens armados com ar ameaçador...

Memórias de Blake Edwards

Semelhante sinopse pode suscitar uma pergunta pertinente: não deveria o crítico de cinema evitar resumir as peripécias que, afinal, ocupam quase dois terços do filme? Não tem o espectador direito a descobrir, por si próprio, tais peripécias? Sim, sem dúvida. Acontece que quem avança com tal resumo é o próprio trailer do filme, também neste caso confirmando um estilo de marketing que quase ninguém questiona: há filmes que deixaram de ser feitos para tentar surpreender o espectador — apenas se pede que, cumprindo uma missão de absoluta rotina, ele se desloque à sala escura para confirmar (?) as informações que já recebeu.
Podemos, talvez, especular um pouco sobre o que seria Girls Night se, de facto, o projecto fosse movido por um mínimo de empenho — e, sobretudo, de gosto — por essa arte de infinita complexidade que é a comédia. Podemos até evocar um certo modelo de comédia em que as referências sexuais, por vezes apenas através de calculadas sugestões, eram tratadas como subtil elemento de revelação das personagens — pensaremos, em particular, num cineasta como Blake Edwards (1922-2010) e em títulos como Uma Mulher de Sonho (1979) ou Victor/Victoria (1982). Na verdade, temos um vislumbre de tal possibilidade através da quinta mulher que se junta ao grupo. É ela a amiga da noiva que chega da Austrália — apesar da banalidade da realização de Aniello, a personagem permite à actriz Kate McKinnon, pelo menos, mostrar um pouco do seu enorme talento.
Curiosamente, McKinnon, tal como Aniello, tem o essencial da sua carreira ligado à televisão, em particular ao programa de comédia Saturday Night Live (NBC): as suas caricaturas de algumas figuras da cena política, incluindo Hillary Clinton a Kellyanne Conway, são pequenas obras-primas de humor. Para além da eficácia com que ela domina o sotaque australiano, há mesmo um momento delicioso — a canção que interpreta durante o genérico final — que fica como exemplo daquilo que Girls Night poderia ter sido. Entretanto, depois desse genérico, há ainda uma breve cena, com a personagem de Jilian Bell, que parece querer prever a hipótese de uma sequela... O marketing assim o impõe.