sábado, junho 03, 2017

David Lynch, aqui e agora

Sheryl Lee
TWIN PEAKS: OS ÚLTIMOS SETE DIAS DE LAURA PALMER (1992)
A obra de David Lynch é actualmente tema de um mini-ciclo, envolvendo reposições e revelações — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Junho), com o título 'Redescobrindo os jogos de espelhos de David Lynch'.

A actualidade cinematográfica também se faz destas ironias. À entrada do Verão cinematográfico, as trombetas do marketing internacional bombardeiam-nos com os habituais blockbusters e os seus inevitáveis e, muitas vezes, reciclados super-heróis. O certo é que o grande nome do momento se distingue por uma aura de sábia veterania: David Lynch.
Foi o Festival de Cannes que funcionou como montra global do novo trabalho de Lynch. Outra vez associado ao produtor e argumentista Mark Frost, o cineasta de Blue Velvet (1986) esteve na Côte d’Azur para apresentar a nova temporada de Twin Peaks, a série que, há um quarto de século, revolucionou conceitos e modelos da ficção televisiva (a passar, entre nós, no canal TV Séries). Numa entrevista ao site oficial do certame, Lynch esclareceu mesmo que está longe de se ver como um reformado, sendo a notícia da sua retirada do cinema francamente exagerada: “As minhas palavras foram mal citadas. Não disse que deixaria de fazer filmes, apenas que ninguém sabe aquilo que o futuro nos reserva.”
No contexto português, a celebração da sua longa actividade — é verdade: a sua primeira longa-metragem, Eraserhead, foi rodada há 40 anos — traduz-se numa “Operação Lynch”, a começar em Lisboa e Porto (circulando, depois, por várias cidades do país). Nela se inclui o documentário David Lynch: The Art Life, uma abordagem das cenas cortadas de Twin Peaks (Twin Peaks: The Missing Pieces) e cerca de duas dezenas de curtas-metragens nunca exibidas comercialmente. Isto sem esquecer a reposição de dois filmes essenciais na filmografia “lynchiana”: Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer (1992) e Mulholland Drive (2001), este numa cópia restaurada em 4K, processo de sofisticada reconversão digital que, para além dos clássicos mais remotos, tem sido também aplicado a alguns títulos emblemáticos do período moderno (recorde-se o caso de Taxi Driver, de Martin Scorsese, relançado em 4K em 2011, na comemoração dos seus 35 anos).

Pintor, músico, cineasta

No contexto actual, o reencontro com Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer envolve um curioso paradoxo. Assim, por um lado, somos levados a encarar a nova série televisiva como um prolongamento dos acontecimentos que acompanhámos nas duas temporadas iniciais (emitidas em 1990/1991); por outro lado, o filme, estreado cerca de um ano depois da conclusão da segunda temporada, propõe um recuo temporal, concentrando-se, como o título português sugere, nos dias que antecedem a descoberta do cadáver da jovem estudante Laura Palmer (interpretada por Sheryl Lee, uma das figuras do elenco original que regressa nos episódios de 2017).
O paradoxo amplia-se pelo facto de, no universo narrativo de Lynch, as medidas do tempo escaparem a qualquer cronologia linear. Um dos aspectos mais envolventes do filme é mesmo a sua construção labiríntica, projectando-nos numa viagem de acontecimentos vividos ou sonhados em que qualquer noção de realidade é posta à prova.
Faz sentido, claro, lembrar que essa agilidade formal de Lynch não pode ser dissociada de uma postura criativa que o tem levado a trabalhar nos domínios da pintura e da música (envolvendo também, em vários filmes, a colaboração com personalidades como o compositor Angelo Badalamenti, autor do inconfundível tema de Twin Peaks). Em qualquer caso, importa não esquecer que Lynch tem sido também, a par de Jean-Luc Godard ou David Fincher, um dos criadores cinematográficos que mais e melhor tem sabido assumir um dado vital da modernidade audiovisual: o seu trabalho artístico já superou a questão tradicional dos cruzamentos entre cinema e televisão, apresentando-se como uma nova síntese formal em que as tradicionais fronteiras audiovisuais não passam de uma convenção do mercado.
Mulholland Drive surgiu quase uma década depois de Twin Peaks, tendo pelo meio Estrada Perdida (1997), desmontagem eufórica das regras tradicionais do thriller, e Uma História Simples (1999), drama poético que parece ter correspondido a uma vontade insólita de experimentar os valores do mais puro classicismo de Hollywood. Por absoluto contraste, Mulholland Drive é o filme de todos os jogos de espelhos. Uma mulher (Laura Harring) espelha-se noutra (Naomi Watts) e o próprio filme, abruptamente dividido em duas histórias que parecem digladiar-se, aposta num misto de perturbação e sedução que, no limite, nos leva a reformular a pergunta mais primitiva: que acontece quando estamos a ver um filme?
O bom senso dirá sempre que as histórias de Lynch correm o risco de não fazer sentido. Em boa verdade, tal afirmação ganha em ser tomada à letra: Lynch encena os nossos gestos quotidianos lado a lado com os pesadelos que nos assombram. Onde acabam os primeiros e começam os segundos? Não digam nada a ninguém, mas está tudo misturado.