Depois da polémica de Cannes, o filme Okja chegou aos ecrãs... da Netflix — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Junho), com o título 'Okja. A revolução chega hoje aos ecrãs da Netflix'.
Convém não nos iludirmos com o ruído mediático que tantas vezes celebra o cinema através das suas manifestações mais fúteis. Por vezes, as mais radicais transformações do mundo dos filmes acontecem de forma discreta, quase silenciosa. O dia de hoje, por exemplo: 28 de Junho de 2017 ficará para a história como uma pequena grande revolução na história do audiovisual no século XXI. Porquê? Porque é hoje que ocorre a estreia de Okja, o filme do sul-coreano Bong Joon Ho que tem servido de bandeira da produção da Netflix.
É hoje, de facto, que os assinantes da plataforma de streaming Netflix (são já quase 100 milhões em todo o mundo, com cerca de metade nos EUA) vão poder começar a ver Okja, uma parábola ecológica sobre um mundo mais ou menos futurista em que uma grande corporação criou, por manipulação genética, uma espécie de porcos gigantes que, pelos seus custos reduzidos, vão poder servir de alimento a mais pessoas. Tudo se complica quando um desses animais (Okja, precisamente) é forçado a abandonar o ambiente paradisíaco em que vive com a jovem que o trata como o seu melhor amigo...
O filme resulta de uma aliança de talentos das mais variadas origens. Assim, Ahn Seo-Hyun, a menina coreana de 13 anos que interpreta a dona de Okja, integra um elenco internacional em que surgem também os nomes de Tilda Swinton, Jake Gyllenhaal e Paul Dano; a direcção fotográfica é de Darius Khondji, responsável pelas imagens de filmes como Seven (1995) e Sala de Pânico (2002), ambos de David Fincher, ou Amor (2012), de Michael Haneke. Isto sem esquecer que à produção está associada a empresa Plan B, de Brad Pitt.
Sustentado por sofisticados efeitos especiais (o corpo de Okja, embora gerado por recursos digitais, possui qualquer coisa de eminentemente físico), o filme de Bong Joon Ho reflecte o mesmo tipo de imaginário que já sustentava o seu grande sucesso internacional, The Host – A Criatura (2006). Neste caso, um animal gigante ameaçava a cidade de Seul, desencadeando, em particular, a apaixonada acção de uma família para manter a sua unidade. O suspense desse filme repete-se em Okja, embora agora num registo mais próximo do conto fantástico mais ou menos juvenil.
Filmes virtuais?
Poderemos, então, perguntar: será que tudo isto bastaria para fazer de Okja um grande evento cinematográfico? É duvidoso... O certo é que as coisas se tornam mais bizarras, porventura mais interessantes, se tivermos em conta que, num certo sentido, Okja já não é um objecto de cinema.
A história das suas atribulações passa, de forma decisiva, pelo Festival de Cannes. Assim, no passado mês de Maio (aliás, antes, quando foi anunciada oficialmente a programação), a “diferença” de Okja veio perturbar o funcionamento do certame e a estabilidade do mercado francês — com repercussões internacionais inevitáveis.
Acontece que Okja e uma outra produção da Netflix também apresentada na secção competitiva do festival — The Meyerowitz Stories, do americano Noah Baumbach — são filmes fabricados para o respectivo serviço, pela Internet, não para as salas de cinema. O que levou a federação de exibidores franceses a formular um veemente protesto: que está a acontecer quando os filmes não cumprem a passagem pelos circuitos tradicionais de exibição? Ou ainda: 122 anos depois dos irmãos Lumière terem feito a primeira projecção pública da história do cinema, os filmes vão passar a ser apenas objectos... virtuais?
A Netflix não abdicou do seu princípio e manteve o calendário de difusão de Okja (que agora se inicia), prevendo apenas a sua exibição pública em algumas salas da Coreia do Sul e dos EUA. O Festival de Cannes, naturalmente não podendo arbitrar tão complexa questão de produção/difusão, sacudiu o embaraço, alterando o seu próprio regulamento: a partir de 2018, os filmes escolhidos para concorrer à Palma de Ouro terão de garantir antecipadamente a sua estreia em sala.
Em boa verdade, ninguém possui soluções mágicas para anular, ou mesmo prever, as zonas de conflito (comercial e cultural) que esta situação pode gerar. Até porque, convém recordar, a Netflix não está só, havendo outras entidades bem diferentes dos clássicos estúdios de cinema, como a Amazon, já fortemente envolvidas na produção de filmes. É caso para dizer que a velha frase promocional — “num ecrã perto de si” — deixou de fazer sentido. Os espectadores com Netflix não sairão de casa para ver Okja: precisamente porque querem ver Okja, vão ficar em casa.